A questão do aborto é, antes de mais, uma questão ética e só depois uma questão política. O que está em questão é saber se interromper voluntariamente a gravidez é ou não eticamente permissível, se há ou não algum mal nisso e porquê – e isto é um problema essencialmente ético. O problema político, por outro lado, consiste em saber se a interrupção voluntária da gravidez deve ou não ser proibida por lei. A lei civil de um Estado de Direito e o modo como este é politicamente conduzido baseiam-se logicamente nos valores em que a sociedade acredita. E as nossas sociedades democráticas e liberais actuais acreditam em valores justificados racionalmente, ou seja, em valores que se baseiem em crenças verdadeiras justificadas. E por isso o método de justificação é o da argumentação dialogada, crítica, razoável e ponderada, que tem como pano de fundo as mais profundas convicções axiológicas de cada indivíduo. Portanto, como é fácil de constatar, o problema ético do aborto é mais fundamental, basilar, porque é um problema de princípio, e, assim, anterior ao problema político.
É claro que, apesar de problemas distintos, estão correlacionados: a resposta ao problema político (o aborto deve ou não ser proibido por lei) depende logicamente da resposta ao problema ético (o aborto é ou não eticamente permissível). Se descobrirmos que não há boas razões para considerar eticamente errado abortar, então ficamos sem razões fundamentais (de princípio) para proibir legalmente o aborto. Mas se descobrirmos boas razões para afirmar que é eticamente errado abortar, não podemos, todavia, daí concluir, necessariamente, que se deve proibir legalmente o aborto, pois há actos que consideramos moralmente errados (por exemplo, a quebra de confiança entre amigos), que não são objecto de proibição nem de penalização legal. É preciso mais: para que o aborto seja punível pela lei é preciso que seja eticamente errado pelas mesmas razões que é eticamente errado matar um ser humano como nós.
É por não terem em conta esta distinção fundamental, que alguns argumentos muito comuns, principalmente a favor da discriminalização do aborto, se encontram fragilizados. Um dos mais utilizados é o argumento de que o aborto deve ser discriminalizado, uma vez que, apesar de proibido por lei, muitas mulheres continuam a praticá-lo, muitas vezes sem condições médicas adequadas, pondo em risco a saúde. Além disso, tal encerra uma profunda injustiça social: enquanto as mulheres ricas acabam por abortar onde podem legalmente fazê-lo, recebendo cuidados médicos adequados, as mulheres pobres estão condenadas ao flagelo do aborto clandestino, com elevado risco para a sua saúde. No entanto, este argumento – de teor político – é uma fuga à questão ética mais fundamental, pois não analisa a hipótese de o aborto ser algo de profundamente errado em si mesmo – e é isto que importa, antes de mais, analisar. Repare-se que o mesmo argumento poderia ser utilizado para defender a discriminalização da pedofilia, pois, apesar de proibida, continuam a existir pedófilos, e os que saem mais prejudicados são os pedófilos pobres, já que os ricos podem viajar para países em que a pedofilia é consentida pelas autoridades. Nenhuma pessoa razoável aceitaria tal justificação. Então, se estas razões não servem para justificar a discriminalização da pedofilia, por que haveriam de servir para discriminalizar o aborto? O que há, pois, a fazer é procurar apresentar razões que justifiquem ser eticamente permissível a prática do aborto. Caso o aborto seja eticamente permissível, nem sequer precisaremos de invocar aquelas razões (tantas vezes acriticamente invocadas) para justificar a sua discriminalização!
Outro argumento comum a favor da discriminalização do aborto é o de que a lei não deve proibir práticas que não prejudiquem os outros, ou seja, devem ser revogadas as leis que criam “crimes sem vítimas”. Entre essas práticas – como a homossexualidade, a eutanásia voluntária, o consumo de drogas, a prostituição – estaria o aborto, que, tal como aquelas, não faz propriamente vítimas, já que apenas prejudica quem nelas se envolve de livre vontade. Punir o aborto – tal como aquele grupo de práticas – seria impor a todos, de forma inaceitável, convicções morais apenas aceites por alguns. Por isso, mesmo que se aceite que o aborto é imoral, devemos apoiar a sua discriminalização, deixando à consciência de cada um a decisão sobre cada caso concreto. Mas este argumento também escapa ao problema ético mais fundamental. É que pressupõe que o aborto é um “crime sem vítimas”. Mas se os defensores da imoralidade do aborto tiverem razão e o aborto for eticamente comparável ao homicídio, então o acto de abortar resulta claramente numa vítima – o feto. Mais uma vez, há que ter coragem e capacidade intelectual para determinar, primeiro, se é ou não homicida a interrupção voluntária da gravidez e só depois retirar as consequências lógicas sobre a sua (i)legalidade ou (des)penalização.
Do outro lado da barricada, também há fragilidades deste género. De facto, o mais comum é pressupor que a perspectiva ética que invoca a humanidade do feto é a perspectiva eticamente mais correcta, concluindo, por isso, que o aborto deve ser proibido por lei. Mas isto é pressupor, à partida, que uma dada perspectiva ética sobre o tema é já correcta, sem necessitar de razões para a sustentar. Isto é pressupor a suposta evidência de que o feto é um ser humano (pelo menos, em potência) e dispensar, assim, qualquer justificação ou clarificação. Ora, é igualmente exigível aos que defendem a humanidade do feto, que apresentem boas razões, de caracter ético, para tal afirmação. O que se passa, pois, em geral, na argumentação que defende a humanidade do feto é esta não conseguir clarificar de modo mais convincente justamente o que pretende provar.
Uma boa razão ética é, neste caso, uma razão que justifique: ou que abortar é mau pela mesma razão que é mau matar um ser humano como nós; ou que não há qualquer razão deste género que torne o aborto eticamente errado.