John Rawls (21 Fevereiro 1921 - 24 Novembro 2002) revitalizou a filosofia política, que em meados do séc. XX vivia praticamente enclausurada na análise linguística e no cálculo utilitarista, duas tentativas de pensar o político fora do âmbito construtivo da metafísica. Não contente em limitar-se a desconstruir os nossos impulsos em colocar questões metafísicas – apesar de inicialmente muito influenciado por Wittgenstein e pela filosofia analítica –, Rawls dedica-se, desde a sua dissertação doutoral, a uma filosofia política construtiva.
Os seus esforços ao longo de duas décadas, em que publicou vários artigos, culminaram na sua obra seminal A Theory of Justice (1971). Nessa obra, Rawls reúne e acrescenta argumentos para defender a sua teoria da “justiça como equidade”. Ampliando a ideia de contrato social, proveniente de Locke, Rousseau e, sobretudo, sob a influência de Kant, defende que uma concepção legítima de justiça surge de uma situação hipotética – a que chamou “posição original” – em que as partes escolheriam, numa situação de igualdade, de entre uma lista de princípios de justiça, aqueles que regulariam a estrutura básica da sociedade. Para assegurar uma situação de igualdade de escolha, as partes estão sujeitas a um “véu de ignorância”, que as privaria de saberem quais os seus interesses particulares, a sua posição na sociedade, tornando, assim, a sua escolha imparcial. Qualquer pessoa nestas circunstâncias de escolha, argumenta Rawls, escolheria os dois princípios de justiça propostos por Rawls: cada pessoa deve ter direito à maior liberdade possível, desde que seja compatível com igual liberdade para os outros (princípio da liberdade); e as desigualdades sociais e económicas só são justificadas quando produzem maior benefício para os menos favorecidos (princípio da diferença) e quando estão ligadas a cargos e posições que estão abertos a todos em igualdade de oportunidades (princípio da igualdade).
O liberalismo de Rawls é claro quando defende que o primeiro princípio (da liberdade) tem prioridade sobre o segundo: «a liberdade só pode ser restringida para bem da liberdade»(1). A crítica fundamental de Rawls contra o utilitarismo é justamente porque esta doutrina, então dominante, nega o caracter separado dos indivíduos e, portanto, é hostil à liberdade. Para Rawls o calculismo utilitarista não permite, como o permite a sua teoria da justiça como equidade, que os indivíduos tenham a oportunidade de formular e perseguir os seus próprios interesses e objectivos, sujeitos, naturalmente, à condição de reconhecerem igual liberdade para os outros.
Num artigo de 1985 (2), Rawls começou a desenvolver a ideia de que uma análise da justiça de caracter liberal, como a que defendia, seria melhor compreendida se fosse concebida enquanto uma teoria política e não metafísica. Em TJ, a “justiça como equidade” era apresentada como uma doutrina abrangente (não só política, mas filosófica, ética, tratando-se de uma concepção de como as pessoas deveriam orientar a sua vida moral). Mas em Political Liberalism(3) Rawls argumenta que uma concepção política de justiça se baseia em valores políticos e não deve ser apresentada como parte de uma doutrina filosófica, religiosa ou moral abrangente. Nas sociedades actuais, organizadas em torno de instituições livres, encontra-se naturalmente uma pluralidade de doutrinas distintas e incompatíveis entre si, muitas delas não razoáveis mesmo. A proposta rawlsiana de um liberalismo político reconhece este “facto do pluralismo razoável” e responde-lhe mostrando de que maneira uma concepção política (o liberalismo político) se ajusta a doutrinas abrangentes diversas e até mesmo conflituantes, embora dentro do limite da razoabilidade: o liberalismo político pode proporcionar um “consenso de sobreposição” que permite a coabitação dessas várias concepções de mundo, filosóficas, religiosas ou morais. Ao desenvolver a sua ideia de liberalismo político, Rawls reformulou a sua exposição e defesa da teoria da justiça como equidade, vindo a apresentá-la como a forma mais razoável de liberalismo político(4).
Questões deixadas de fora em TJ, como aquelas acerca da justiça internacional, justiça familiar, entre outras – “problemas de extenção”, como lhe chamou – ocuparam Rawls no final da sua carreira, reflexões que vieram a ser reunidas em The Law of Peoples, obra publicada em 1999 (5), onde defende que o liberalismo político, tal como o concebe, pode ser alargado à esfera internacional, e onde propõe princípios de conduta internacional que podem ser aceites tanto por povos liberais como por povos não liberais.
Em suma, o esforço de Rawls consistiu nada mais nada menos do que em tentar resolver um dos mais árduos problemas da filosofia política – a conciliação entre os valores, dificilmente conciliáveis, da igualdade e da liberdade. Na teoria de Rawls, a igualdade é assegurada através da protecção dos direitos e liberdades apropriadas através da estrutura básica da sociedade; e a liberdade é preservada permitindo aos indivíduos que persigam as suas razoáveis concepções do bem, quaisquer que elas sejam, dentro dos limites constitucionais.
A influência da sua obra foi enorme, suscitando fortes reacções da parte de outros filósofos. Dentro da própria tradição liberal, irromperam críticas, como a do libertário Robert Nozick, muito crítico do princípio da diferença, considerando a justiça redistributiva um “roubo” face à livre actividade das pessoas que trabalham e daí retiram justamente os seus rendimentos. Um outro conjunto de fortes objecções provêm de um conjunto de filósofos geralmente designados de comunitaristas, que põem em causa a concepção rawlsiana (e o liberalismo em geral), por assentar numa concepção do indivíduo (o «eu desimpedido», na expressão de Michael Sandel) e da relação entre indivíduos, que é empiricamente falsa e normativamente insatisfatória, já que, segundo aquele grupo de filósofos, o liberalismo não tem em conta que a concepção que as pessoas têm de si mesmas é uma consequência da sua localização numa comunidade.
Para além da sua influência se ter verificado ao nível académico também na Economia, na Ciência Política, na Sociologia e no Direito, ela transgrediu os muros da vida académica: Rawls foi citado, nos últimos anos, em mais de 60 sentenças judiciais nos E.U.A.; os manifestantes na Praça de Tiananmen brandiram cópias de TJ diante das câmaras de televisão; escritores indianos citaram-no incessantemente nos seus protestos contra os perigos do sectarismo religioso...
Os seus esforços ao longo de duas décadas, em que publicou vários artigos, culminaram na sua obra seminal A Theory of Justice (1971). Nessa obra, Rawls reúne e acrescenta argumentos para defender a sua teoria da “justiça como equidade”. Ampliando a ideia de contrato social, proveniente de Locke, Rousseau e, sobretudo, sob a influência de Kant, defende que uma concepção legítima de justiça surge de uma situação hipotética – a que chamou “posição original” – em que as partes escolheriam, numa situação de igualdade, de entre uma lista de princípios de justiça, aqueles que regulariam a estrutura básica da sociedade. Para assegurar uma situação de igualdade de escolha, as partes estão sujeitas a um “véu de ignorância”, que as privaria de saberem quais os seus interesses particulares, a sua posição na sociedade, tornando, assim, a sua escolha imparcial. Qualquer pessoa nestas circunstâncias de escolha, argumenta Rawls, escolheria os dois princípios de justiça propostos por Rawls: cada pessoa deve ter direito à maior liberdade possível, desde que seja compatível com igual liberdade para os outros (princípio da liberdade); e as desigualdades sociais e económicas só são justificadas quando produzem maior benefício para os menos favorecidos (princípio da diferença) e quando estão ligadas a cargos e posições que estão abertos a todos em igualdade de oportunidades (princípio da igualdade).
O liberalismo de Rawls é claro quando defende que o primeiro princípio (da liberdade) tem prioridade sobre o segundo: «a liberdade só pode ser restringida para bem da liberdade»(1). A crítica fundamental de Rawls contra o utilitarismo é justamente porque esta doutrina, então dominante, nega o caracter separado dos indivíduos e, portanto, é hostil à liberdade. Para Rawls o calculismo utilitarista não permite, como o permite a sua teoria da justiça como equidade, que os indivíduos tenham a oportunidade de formular e perseguir os seus próprios interesses e objectivos, sujeitos, naturalmente, à condição de reconhecerem igual liberdade para os outros.
Num artigo de 1985 (2), Rawls começou a desenvolver a ideia de que uma análise da justiça de caracter liberal, como a que defendia, seria melhor compreendida se fosse concebida enquanto uma teoria política e não metafísica. Em TJ, a “justiça como equidade” era apresentada como uma doutrina abrangente (não só política, mas filosófica, ética, tratando-se de uma concepção de como as pessoas deveriam orientar a sua vida moral). Mas em Political Liberalism(3) Rawls argumenta que uma concepção política de justiça se baseia em valores políticos e não deve ser apresentada como parte de uma doutrina filosófica, religiosa ou moral abrangente. Nas sociedades actuais, organizadas em torno de instituições livres, encontra-se naturalmente uma pluralidade de doutrinas distintas e incompatíveis entre si, muitas delas não razoáveis mesmo. A proposta rawlsiana de um liberalismo político reconhece este “facto do pluralismo razoável” e responde-lhe mostrando de que maneira uma concepção política (o liberalismo político) se ajusta a doutrinas abrangentes diversas e até mesmo conflituantes, embora dentro do limite da razoabilidade: o liberalismo político pode proporcionar um “consenso de sobreposição” que permite a coabitação dessas várias concepções de mundo, filosóficas, religiosas ou morais. Ao desenvolver a sua ideia de liberalismo político, Rawls reformulou a sua exposição e defesa da teoria da justiça como equidade, vindo a apresentá-la como a forma mais razoável de liberalismo político(4).
Questões deixadas de fora em TJ, como aquelas acerca da justiça internacional, justiça familiar, entre outras – “problemas de extenção”, como lhe chamou – ocuparam Rawls no final da sua carreira, reflexões que vieram a ser reunidas em The Law of Peoples, obra publicada em 1999 (5), onde defende que o liberalismo político, tal como o concebe, pode ser alargado à esfera internacional, e onde propõe princípios de conduta internacional que podem ser aceites tanto por povos liberais como por povos não liberais.
Em suma, o esforço de Rawls consistiu nada mais nada menos do que em tentar resolver um dos mais árduos problemas da filosofia política – a conciliação entre os valores, dificilmente conciliáveis, da igualdade e da liberdade. Na teoria de Rawls, a igualdade é assegurada através da protecção dos direitos e liberdades apropriadas através da estrutura básica da sociedade; e a liberdade é preservada permitindo aos indivíduos que persigam as suas razoáveis concepções do bem, quaisquer que elas sejam, dentro dos limites constitucionais.
A influência da sua obra foi enorme, suscitando fortes reacções da parte de outros filósofos. Dentro da própria tradição liberal, irromperam críticas, como a do libertário Robert Nozick, muito crítico do princípio da diferença, considerando a justiça redistributiva um “roubo” face à livre actividade das pessoas que trabalham e daí retiram justamente os seus rendimentos. Um outro conjunto de fortes objecções provêm de um conjunto de filósofos geralmente designados de comunitaristas, que põem em causa a concepção rawlsiana (e o liberalismo em geral), por assentar numa concepção do indivíduo (o «eu desimpedido», na expressão de Michael Sandel) e da relação entre indivíduos, que é empiricamente falsa e normativamente insatisfatória, já que, segundo aquele grupo de filósofos, o liberalismo não tem em conta que a concepção que as pessoas têm de si mesmas é uma consequência da sua localização numa comunidade.
Para além da sua influência se ter verificado ao nível académico também na Economia, na Ciência Política, na Sociologia e no Direito, ela transgrediu os muros da vida académica: Rawls foi citado, nos últimos anos, em mais de 60 sentenças judiciais nos E.U.A.; os manifestantes na Praça de Tiananmen brandiram cópias de TJ diante das câmaras de televisão; escritores indianos citaram-no incessantemente nos seus protestos contra os perigos do sectarismo religioso...
.
______
(1) John Rawls, A Theory of Justice (Oxford: Oxford University Press, 1973) 302. Doravante referida com as siglas TJ.
(2) John Rawls, “Justice as fairness: political not metaphysical”, Philosophy and Public Affairs 14 (1985) 223-252.
(3) John Rawls, Political Liberalism (New York: Columbia Univ. Press, 1993).
(4) John Rawls, Justice as Fairness – A Restatement (Harvard: Harvard University Press, 2002).
(5) John Rawls, The Law of Peoples (Harvard: Harvard University Press, 1999).
(1) John Rawls, A Theory of Justice (Oxford: Oxford University Press, 1973) 302. Doravante referida com as siglas TJ.
(2) John Rawls, “Justice as fairness: political not metaphysical”, Philosophy and Public Affairs 14 (1985) 223-252.
(3) John Rawls, Political Liberalism (New York: Columbia Univ. Press, 1993).
(4) John Rawls, Justice as Fairness – A Restatement (Harvard: Harvard University Press, 2002).
(5) John Rawls, The Law of Peoples (Harvard: Harvard University Press, 1999).
Sem comentários:
Enviar um comentário