sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Religião, liberdade e igualdade

«Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai
em espírito e em verdade» (João 4:23)
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O problema da exibição de símbolos religiosos em escolas públicas é o de saber se um espaço público, como uma escola, deve ou não ostentar formas que possam, de algum modo, interferir ilegitimamente na liberdade religiosa dos indivíduos e no tratamento igual, por parte do Estado, de cultos religiosos.
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A civilização ocidental, ao contrário de outras, começou, de certo modo, por responder a este problema desde o seu berço, na Grécia Antiga, quando os primeiros filósofos fizeram a crítica dos seus mitos, através do uso livre e desinteressado da razão. A esse processo histórico que consiste na separação entre a religião e a política, ciência, artes e ofícios, entre a fé e a razão, chama-se processo de secularização – dar ao Homem (ad seculum) a possibilidade de organizar e orientar a sua vida terrena de modo livre e racional, deixando a dimensão espiritual da contemplação do divino entregue à religião.

Ora, tal significa que se promove, não a destruição de qualquer tipo de actividade contemplativa da divindade, mas sim uma separação entre duas esferas distintas da consciência, do pensamento e da acção humana. O que significa que a mesma gesta cultural que foi capaz de fazer a crítica dos seus mitos fundacionais, teológicos e salvíficos foi também capaz de arguir em favor de uma virtude ético-política central, como é a tolerância. Separar religião e política, religião e ciência, fé e razão não implica necessariamente qualquer forma de negação de qualquer das esferas da existência humana. A tolerância, designadamente religiosa, é, pelo contrário, a virtude de, em geral, aceitar outras crenças religiosas diferentes, inclusive a ausência delas, como o ateísmo.

Há, pois, dois tipos de razões para defender a tese segundo a qual o espaço público, não especificamente religioso, deve evitar ostentar símbolos religiosos (aliás, do mesmo modo que deve evitar, por exemplo, símbolos político-partidários):

1) a ostentação de símbolos que remetam para concepções religiosas ou modos de vida culturalmente específicos é já, por si só, uma forma de persuasão, portanto de convencimento de alguém a aderir a um determinado conjunto de ideias, ideais ou crenças e tal pode ser lesivo da liberdade individual de consciência, de pensamento e, no caso concreto, da liberdade religiosa;

2) e tal ostentação pode colocar em causa a isenção do Estado perante as várias confissões religiosas e, portanto, colocar em risco o princípio da igualdade de tratamento de grupos culturais, religiosos ou políticos.

A razão de ser da existência do Estado moderno, secular, democrático e liberal é, antes de mais, a protecção das liberdades individuais (liberdade religiosa incluída) e a não promoção de qualquer ideal religioso em particular, sob pena de destruir dois dos pilares ético-políticos fulcrais da cultura ocidental: liberdade e igualdade.

Assim, no caso particular de uma escola, que existe – segundo a melhor tradição da filosofia liberal da educação – para ensinar, fazer aprender e, em última análise, mostrar aos alunos o universo do saber humano, a ostentação de símbolos religiosos ou outros de teor idêntico pode constituir uma forma ilegítima de persuasão sobre o indivíduo e uma forma de tratamento preferencial de um dado culto religioso, por muito influente e fundamental que tal seja na estruturação da nossa cultura. A escola deve partilhar, demonstrar e até convencer; mas deve evitar a manipulação persuasiva no sentido de orientar os alunos para uma determinada tendência religiosa ou político-partidária. De facto, poderíamos admitir que, tal como numa boa escola os laboratórios de Física e de Química devem conter instrumentário científico adequado, também uma hipotética sala de Religião e Moral deveria conter símbolos religiosos de uso didáctico. Mas daí não se segue que seja defensável que outros espaços das escolas devam exibir símbolos religiosos (bem como político-partidários), isto se pretendermos ser consistentes com aqueles valores fundacionais da nossa civilização; caso contrário, teríamos de demonstrar a sua falsidade ou desvalor.

Em suma, as escolas não devem ostentar símbolos religiosos, pela mesma razão que não deveriam ostentar, a havê-los, símbolos ateístas – a fim de preservarem, cultivarem e partilharem, acima de tudo, os valores ético-políticos fundamentais da liberdade e igualdade, que fundam uma mais justa organização da vida pública.

2 comentários:

André Ferreira disse...

Estou de acordo com a tese.

Do mesmo modo que poderiam existir símbolos religiosos também haveria o direito de existirem símbolos de outros cultos, por exemplo os Illuminatti, os ateus (como referido na tese), e de cultos satânicos, porque até a causa de existência de alguns deste grupos/cultos pode ser mais justificável, por assim dizer, que da Igreja Católica.

Miguel Portugal disse...

É precisamente para não beneficiar injustamente (não equitativamente) nenhum culto religioso que o Estado deve manter a sua neutralidade.

Abraço, André