terça-feira, 5 de outubro de 2010

A República ou o longo caminho do poder popular

A República é um tipo de regime político, isto é, uma forma que o poder pode ter, um modo de organizar as relações entre os indivíduos e o estado. Desde a Política de Aristóteles (séc. IV a.C.), os Seis Livros da República (1576) de Jean Bodin ou O Espírito das Leis (1748) de Montesquieu, que a república foi definida como um regime popular, no sentido de que todo o povo participa no exercício do poder, normalmente contrastado com a monarquia, em que o poder é exercido por um só, ou com a aristocracia, em que o poder é exercido por alguns. Hoje é, sobretudo, entendida como um modo de designação do chefe de estado: ao contrário da monarquia – em que existe um chefe de estado hereditário –, a república é uma forma política em que ou não existe chefe de estado ou em que o chefe de estado não é hereditário; normalmente, trata-se de um Presidente (da República) eleito por período limitado.

Porém, o contraponto com a monarquia não é muito interessante, já que, em última análise, as diferenças entre regimes republicanos e modernas monarquias constitucionais acabam por não ser relevantes. A questão fundamental não é a de saber como se designa o chefe de estado, mas sim saber qual é a relação da população com o poder – existe ou não a possibilidade da população adulta ou seus representantes poderem participar directa ou indirectamente na tomada de decisões? Daí que hoje se dê mais atenção à distinção entre regimes ditatoriais ou aristocráticos e regimes democráticos.

Nos regimes ditatoriais ou aristocráticos somente uma fracção da população adulta participa na escolha e controlo governamentais, proveniente ou de um partido, de uma classe social, da administração central ou do exército. Enquanto nos regimes democráticos a totalidade da população adulta pode participar, directa ou indirectamente, nas tomadas de decisão e escolha governamentais.

No caso da participação directa – a democracia directa –, a população participa directamente nas tomadas de decisão, como acontece ainda hoje em três pequenos cantões da Suíça. Mas a democracia directa levanta alguns problemas, como a falta de tempo e qualificação técnica dos indivíduos para estudar os dossiers complexos antes da tomada de decisão ou a grande dimensão dos estados, que inviabiliza o debate e participação directa de todos na tomada de todas as decisões. Para além daquelas regiões suíças, a democracia directa existe apenas quando se usa o instrumento do referendo (um direito de iniciativa popular). Por isso, na esmagadora maioria dos regimes democráticos vigora e democracia representativa, na qual as populações elegem os seus representantes para, eles sim, virem a tomar decisões.

Mas a democracia representativa também não está isenta de problemas, dos quais se destacam o desinteresse da população pela vida pública (abstenção eleitoral) e o facto de serem efectivamente os partidos políticos (e não a população) a escolher os governantes. Claro que sempre se pode dizer que a abstenção eleitoral revela apenas um direito, que faz parte da liberdade individual, e não retira legitimidade à representação democrática. E quanto a serem os partidos a escolher os governantes, sempre podemos dizer que essa escolha é democrática, pois há eleições dentro dos partidos, e tal mostra também, mais uma vez, a liberdade das pessoas em não pertencerem a qualquer partido.

No entanto, isso não resolve os grandes problemas da democracia representativa. «A democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo», na frase lapidar de Abraham Lincoln. Mas como operacionalizar isso? Se olharmos para a história verificamos que, a partir dos anos 40 do séc. XX, os estudos apontaram para o papel fundamental que as elites políticas desempenharam na concepção dos interesses populares e na forma como fizeram com que tivessem peso nas tomadas de decisão. As vantagens para a existência dessas elites governativas eram claras: as pessoas podiam viver as suas vidas sem terem que participar constantemente nas tomadas de decisão e havia maior estabilidade, já que havia menos envolvimento popular («a política é a arte de ajudar o público a não tratar dos assuntos que lhe interessam», nas célebres palavras usadas por Winston Churchill para definir a própria política). Porém, a partir dos anos 60, surgiram as críticas: os baixos níveis de envolvimento dos eleitores foram apontados como uma resposta à sua falta de poder; e, no fundo, a igualdade política universal (iguais direitos de voto, livre acesso a cargos públicos, liberdade de reunião, expressão e organização) era vista como mais formal do que substancial.

Em resposta a estes defeitos da democracia representativa surge a proposta de uma democracia participativa. O objectivo é assegurar que os resultados dos processos políticos reflictam os verdadeiros interesses da população em geral, bem como dar efectiva substância aos direitos políticos, através de uma cidadania mais activa. Uma cidadania mais activa requer uma autonomia adequadamente desenvolvida, uma disposição para sacrificar interesses egoístas e uma preocupação genuína com o bem comum. Os adeptos da democracia participativa encaram estas exigências como uma forma de desenvolver as potencialidades do indivíduo. No entanto, esta aposta na democracia participativa levanta questões importantíssimas para a definição das relações entre indivíduo e estado: república formal ou república substancial? Cidadania formal ou cidadania substancial? Quer dizer: será suficiente o direito de participação política (usado livremente, quando o indivíduo assim o entender) ou será necessário um dever de participação política? Portanto: simples possibilidade de uma cidadania passiva ou terá que existir, necessariamente, uma mais constante cidadania activa? Não é difícil de ver como a democracia participativa pode desembocar em algumas das limitações da velha democracia directa.

É assim que surge, a partir dos anos 80/90, uma outra forma de encarar a democracia, tentando ultrapassar ou pelo menos minimizar estes problemas: a democracia deliberativa. A ideia é a de que não basta mais participação, mas é necessário que haja mais participação por aqueles que são mais afectados pelas tomadas de decisão. Além disso, a democracia é vista não só como um regime que assenta na votação e na regra da maioria, mas também (e sobretudo) na discussão de questões verdadeiramente importantes para as pessoas. A política não é, nesta perspectiva, uma simples competição entre interesses concorrentes, mas sim um processo deliberativo que envolve conversas racionais entre cidadãos, que visam produzir um acordo e, se possível, um consenso.

A república está, portanto, associada à ideia de democracia e a democracia é um processo exigente de tomadas de decisão. Exige uma formação séria e complexa dos cidadãos, que os coloque de frente para o mundo da vida pública, mas sem os privar das suas vidas privadas; exige autonomia suficiente para que o indivíduo possa evitar a manipulação por parte dos sempre atractivos grupos de interesses (partidos ou outros); e exige uma ética de especial entrega à comunidade, à “coisa pública” (do latim res-publica), que pode ser tão difícil quanto controversa, se limitar excessivamente a liberdade individual. Como gostavam de dizer alguns intelectuais franceses do final do século passado, a democracia está sempre, pois, por vir.

Publicado em: Jornal Terra Quente, 1-10-2010.

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