quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Liberdade de expressão

Quando, há algum tempo atrás, se elevou a bandeira da liberdade de expressão para legitimar as famosas “caricaturas de Maomé” contra a rebelião dogmática e “atrasada” dos fundamentalistas islâmicos, tudo pareceu demasiado simples: o caricaturista tinha o direito fundado na liberdade de expressão de caricaturar o profeta e o povo islâmico não tinha o direito de o impedir. Na altura talvez tenha sido dos poucos a lembrar o facto de civilização ocidental e mundo islâmico viverem em dois paradigmas culturais e ético-políticos de tal modo distintos, cuja incomensurabilidade exigia algum cuidado nas apressadas comparações – apesar do princípio liberal da liberdade de expressão ser, no Ocidente, um princípio inquestionável, a sua universalização, não sendo fácil, requer uma prudência acrescida (talvez fosse bom ter consciência de que tal princípio muito dificilmente poderá ser valorizado, muito menos de forma imposta, no mundo islâmico ainda muito pouco secularizado).

Agora, o Nobel português da literatura vem, no seu recente Caim e mais uma vez, criticar e até, ao que parece, parodiar a Bíblia. Mas cidadãos de um país integrado, não só geográfica mas também historicamente, na secularizada civilização ocidental reagem na desmesura de quem não lhe permite, ao escritor, a liberdade de exprimir as suas ideias.

Este caso faz-me lembrar a defesa que, no séc. XIX, o filósofo liberal britânico John Stuart Mill fez da liberdade de expressão, na sua obra Sobre a Liberdade:

«(…) o mal particular em silenciar a expressão de uma opinião é que constitui um roubo à humanidade; à posteridade, bem como à geração actual; àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que a sustentam. Se a opinião for correcta, ficarão privados da oportunidade de trocar o erro por verdade; se estiver errada, perdem uma impressão mais clara e viva da verdade, produzida pela sua confrontação com o erro – o que constitui um benefício quase igualmente grande.»

O euro-deputado do PSD que veio “pedir a cabeça” do ateu militante José Saramago (aqui), incorre num erro grosseiro, que parece tomar conta de muitos cidadãos que ascendem à vida pública – uma pobreza confrangedora de pensamento e uma ignorância da história das ideias políticas, escolhos que provocam o tropeço em contradições e o atropelo dogmático e incrivelmente inconsciente dos princípios estruturantes da própria civilização em que vivem e ajudam a gerir a vida pública dos seus concidadãos.
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É claro que a liberdade de expressão tem limites, como qualquer defensor lúcido desse princípio fulcral sabe (como o próprio Mill! Veja-se, a propósito, a crónica de hoje de João Cardoso Rosas no "i"). Mais complicado é definir, fundadamente, tais limitações. Muito diferente é arrasar grosseiramente o próprio princípio da liberdade: ao invés de discutir a crítica saramaguiana, ataca-se a pessoa, incorrendo na, infelizmente, muito usada falácia ad hominem, que torna o argumento completamente inválido. Mário David não só veio assim ajudar a alimentar uma polémica comercialmente rentável para o escritor, como veio mostrar o quão longe da civilização democrática liberal se encontra o pensamento e a acção de muitos dos cidadãos portugueses, incluindo aqueles em que se depositam, através de um acto gerador de representatividade, as grandes responsabilidades públicas.

Só nos resta esperar que alguns Saramagos continuem a exprimir livremente as suas ideias problematizadoras das crenças mais fundamentais da nossa civilização e que sejamos livres de o ler ou de o não ler. Mas espera-se também que haja capacidade de, reflectindo em tais críticas, mostrar, com elevação e qualidade intelectual, que, se for o caso, são críticas inválidas.

4 comentários:

Unknown disse...

Precisamente. É sem dúvida notável a quantidade de hipocrisia presente na sociedade católica, que supostamente é mais liberal e racional que a sociedade islâmica e fundamentalista.
Se bem que se o Saramago fosse islamico, por esta altura já tinha recebido 23562375632563 ameaças de morte por parte dos fundamentalistas. Daí a religião ser tão perigosa, afinal de contas, tantos milhões a acreditarem num ser imaginário nunca pode dar bom resultado. Veja-se o que acontece no mundo. Se se tiver sorte podemos apenas sofrer criticas por exercermos a nossa liberdade de expressão, por outro lado se tivermos azar podemos até ser mortos! Situações destas são perfeitamente incocebiveis em sociedades que supostamente deviam ser civilizadas.
A próxima etapa da nossa evolução é concerteza a mental, o abandono dos preconceitos que nos rodeiam, a começar pela religião! Resta saber se ainda viverei para testemunhar semelhante evolução. Mas algo me diz que não.

Abraço sr Portugal! Temos que combinar um jantar aqui na terrinha..

Miguel Portugal disse...

Claro, Edgar, que assumir ideias, no mínimo, discutíveis, como as que envolvem as crenças religiosas, como sendo verdades absolutas, cria, num contexto de pluralismo e de liberdade de pensamento e expressão, um ambiente crispado. São sempre dois mundos em conflito: o dos dogmas fundamentais e o do pensamento crítico. No entanto, a religião pode ter o seu lado positivo e não tem de ser conduzida e assumida de forma intolerante.
Por outro lado, o que Saramago escreveu e disse foi, por vezes, excessivo. Mas, neste caso, só parece haver duas opções: ou seguir a via do "politicamente correcto" e não dizer o que possa desagradar aos outros; ou seguir a via da liberdade de pensamento e expressão. A primeira via é mais cómoda. A segunda exige maiores competências intelectuais: porque razão dizemos o que dizemos.

Abraço

(Temos mesmo que combinar esse repasto reflexivo!)

Unknown disse...

A única vantagem que pode provir da religião é a moral. Isto admitindo o caso da religião cristã, não sei o suficiente sobre as outras para poder argumentar. Mas será necessário? É mesmo preciso que as pessoas se sintam forçadas a ser boas porque se não o forem um deus virá e castigá-los-á? As pessoas não podem simplesmente ser boas porque é ético e melhor para todos nós se assim o formos? A abolição da religião deveria coincidir com uma revolução das mentalidades, sem que as pessoas se sentissem obrigadas por um deus imaginário mas sim obrigadas pela sua consciencia! Afinal de contas, parece-me a maneira mais honesta de bondade. Simplesmente porque é ético.

Abraço

(Quanto ao jantar, ver se falo com o Manel acerca disso)

Miguel Portugal disse...

Claro que pode/deve haver ética sem Deus e, portanto, sem a heteronomia de uma religião voraz do indivíduo e da sua livre consciência e decisão. A ética racional é isso mesmo: uma reflexão sobre a vida boa, verdadeiramente humana.

Mas o tema da religião é mais vasto e o âmbito da metafísica para que remete dá sempre que pensar. E neste caso, tanto o ateu como o crente esclarecido vivem numa encruzilhada: existirá ou não Deus? Haverá ou não vida para além da morte? Entre outras questões que podem sempre assaltar mesmo a mente mais céptica.

Mas é claro que, para quem valoriza uma vida livre, com um uso pleno do livre-arbítrio, a religião é sempre uma instituição que procura, de certo modo, ainda que naturalmente com as melhores intenções, manipular os nossos pensamentos e acções.

Abraço