quarta-feira, 9 de julho de 2008

Anti-americanismo imprudente

O Ex-Presidente da República, Mário Soares, um anti-americano militante, afirmou – num encontro patrocinado pela Ordem dos Advogados, em que se encontrava presente uma representante da embaixada dos E.U.A. em Portugal – que a prisão Norte-Americana de Guantanamo apenas tem paralelo com os campos de concentração nazi.

Para além do anti-americanismo quase (para não dizer mesmo) primário, revelado no exagero imprudente das declarações proferidas, e do facto de Mário Soares (como, em geral, toda a esquerda, incluindo a socialista, tem tendência para fazer) ter esquecido os massacres de Staline, revelam, sobretudo, um profundo desconhecimento da problemática filosófico-política envolvida nesta questão. (Curiosamente, deve conceder-se a Mário Soares, paradoxalmente, uma das mais bem esclarecidas mentes da política nacional!)

Recentemente, o Supremo Tribunal dos E.U.A. concedeu, e parece-me que bem, direitos iguais aos presos de Guantanamo – privados da sua liberdade com base em suspeitas de participação em actividades terroristas, mas muitos sem terem ainda sido formalmente acusados, e que seriam julgados por um tribunal militar – para poderem recorrer aos tribunais comuns. Esta decisão de reforço dos direitos e liberdades daqueles presos funda-se, em última análise, numa tradição do pensamento político ocidental muito influente nos sistemas políticos contemporâneos, que consiste em defender que a natureza, o âmbito e o objectivo da autoridade política deve ser entendido em relação com a prioridade atribuída à liberdade humana. Desde Maquiavel, Locke, Thomas Paine, J. S. Mill, até Rousseau, Hegel ou T. H. Green e mesmo aos anarquistas e marxistas, que a promoção da liberdade é considerada a finalidade da política. Claro que há diferenças de concepção: em alguns casos é vista como um bem em si mesma, noutros como condição necessária para a realização de outros valores relacionados com o bem-estar humano; alguns (como Rousseau, Hegel ou Green) consideram-na como atributo social, outros (como Locke ou J. S. Mill) concebem-na em termos individualistas.

É esta complexa tradição liberal que dá forma, em boa parte, ao modo como se concebe hoje, nas sociedades democráticas e liberais, o papel da política. É ela que deu origem aos Direitos Humanos, entre os quais se encontra o direito a não ser privado da sua liberdade sem acusação formada. É nela que se ancora a indignação de Mário Soares.

No entanto, o Ex-Presidente da República esquece, para além do facto do poderoso terrorismo, que ameaça justamente as nossas sociedades democráticas liberais, uma outra longa tradição do pensamento político ocidental, que, irremediavelmente, deve aqui ser invocada por ser um outro pilar fundacional do modo como se tem entendido a finalidade da política: a identificação e a manutenção de uma ordem apropriada sempre foram vistas como uma condição prévia necessária para que o Estado organize formas meritórias da existência humana. Com a excepção de marxistas e anarquistas, tem-se pensado que as capacidades coercivas e persuasivas do Estado eram essenciais para a criação da ordem. É claro que podemos vislumbrar concepções “negativas” de ordem: Agostinho, Lutero, Hobbes e os modernos proponentes do governo autoritário (Carlyle, Maurras ou Hitler) defenderam a ordem como meio de reprimir as más acções e ou compensar as deficiências morais e intelectuais de grande parte da população. Mas também podemos encontrar concepções “positivas” de ordem: autores como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Rousseau, Hegel e Green defenderam uma conjugação de formas de ordem particulares com a necessidade de estabelecer condições de cooperação, nas quais os seres humanos pudessem prosseguir outros valores fundamentais, designadamente o valor da liberdade!

Ora, no mundo globalizado de hoje a questão da ordem é novamente suscitada como nunca: a tendência para a globalização envolve formas de interacção, interdependência e direcção, que não só vão para além do Estado como ameaçam transcendê-lo. E a ameaça do terrorismo é grotescamente demasiado real para ser esquecida. É neste sentido, que o cosmopolitismo volta a ser encarado com profunda seriedade e pragmatismo, através, designadamente, da concepção teórica em curso de um governo mundial.

Não podemos, pois, esquecer que a defesa da liberdade de suspeitos de terrorismo pode colidir com a liberdade de indivíduos que, não só não são suspeitos de tal crime, como apenas podem viver se tal crime não for perpetrado (pense-se nisto!). Para tal, não podemos afastar-nos muito de uma forma “positiva” de encarar a ordem como meio do Estado poder proporcionar condições necessárias para poderem ser vividos pelos indivíduos outros valores, tais como a fundamental liberdade.

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