segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Isaiah Berlin (1909-1997), pensador da liberdade

Há dez anos morria Isaiah Berlin, nascido em 6 Junho de 1909 na Rússia soviética e que viveu em Inglaterra desde os 11 anos, foi um filósofo e eminente historiador das ideias, escritor e orador de uma magistral e contagiante eloquência, clarificador de algumas das mais importantes e centrais questões da história das ideias do Ocidente. Numa era de fundamentalismos generalizados, em vários âmbitos e graus (e num tempo em que, intramuros, por exemplo, a polémica do “Museu do Estado Novo” chega ao Parlamento), talvez não fosse má ideia dar uma vista de olhos ao pluralismo tolerante de Berlin!

O interesse de Berlin pela Filosofia começou, no início da década de 1930, sob a influência da filosofia analítica dos dois mais influentes filósofos anglo-saxónicos de então – G. E. Moore e Bertrand Russell. Nesse sentido, Berlin interessou-se pela questão da natureza do significado dos enunciados linguísticos e tomou parte da discussão (a chamada “Filosofia de Oxford” terá começado em discussões nocturnas em sua casa), mas permaneceu sempre um pensador mais «herético do que amigável», defendo ao longo de toda a sua vida intelectual, que, embora a experiência empírica seja a única coisa que a linguagem pode expressar com significado (não há outra realidade), a «verificabilidade não é o único ou mesmo o mais plausível, critério de conhecimento ou crenças ou hipóteses»(1).

No entanto, depois de ter servido na 2.ª Guerra Mundial, Berlin, de volta a Oxford, interessou-se sobretudo por duas questões centrais: o monismo (tese central da filosofia ocidental, desde Platão aos nossos dias) e o significado e aplicação da noção de liberdade.

Segundo a maioria dos filósofos ocidentais, depois de descoberto o método adequado, a verdade mais fundamental acerca da vida social, política, moral e pessoal poderia ser também descoberta e, assim, resolvidos todos os problemas da humanidade. A completar esta tese central, os filósofos tiveram tendência para advogar esta outra: para todas as verdadeiras questões deve haver apenas e só uma única resposta verdadeira, sendo todas as outras respostas falsas.

O cepticismo de Berlin relativamente a esta crença central da filosofia ocidental, levou-o a percorrer os pensamentos do filósofo italiano do séc. XVIII, Giambattista Vico, interessado em pensar a historicidade e que terá sido, segundo Berlin, o primeiro a conceber a ideia de culturas; do alemão J. G. Herder, que defendia que as diferentes culturas davam respostas diferentes para as suas questões centrais, não havendo, pois, respostas verdadeiras, válidas de modo universal para todas as culturas; até à ideia, desenvolvida pelo Romantismo do séc. XIX, de que «os ideais não são verdades objectivas escritas no céu e que precisam ser compreendidas, copiadas, praticadas pelo homem; mas antes são criadas pelo homem. Os valores não são encontrados, mas feitos; não descobertos, mas gerados».(2)

É claro que Berlin relacionou esta interpretação estética da moralidade (a criação é tudo!) com uma série de movimentos que assolaram a cultura ocidental e que se erigiram sob a égide do “eu faço os meus próprios valores”, sendo este “eu”, muitas vezes, uma nação, uma igreja, uma raça, um partido, uma classe, em que o indivíduo não é senão uma pedra do edifício, um fragmento vivo do organismo. Assim aconteceu com o nacionalismo germânico – “eu faço isto, não porque é bom ou certo ou porque goste, mas porque sou alemão e esta é a maneira alemã de viver” – , ou com o moderno existencialismo – “eu faço isto, porque comprometi-me a mim mesmo com esta forma de existência, criada por mim e não por qualquer ordem objectiva ou regra universal a que devo obedecer”.

Embora Berlin nunca tenha aceite a ideia destes “super-egos” – permaneceu sempre um empirista, nunca um idealista –, reconheceu a sua importância para a acção e o pensamento modernos, conduzindo-o à defesa de uma das suas ideias centrais – o pluralismo: há uma pluralidade de ideais, tal como há uma pluralidade de culturas e temperamentos.

Berlin defendeu o pluralismo, mas não o relativismo, do qual se afastou propondo, não que cada um tenha os seus valores e que estes sejam absolutamente inconciliáveis com os dos outros (relativismo), mas que, apesar da pluralidade de valores, diferentes entre si, não há um número infinito deles, quer dizer, o número de valores que se podem perseguir sem perder as características ou o perfil humano é finito. E «se um homem persegue um destes valores, eu, que não o faço, sou capaz de entender porque razão ele o faz ou como seria, nas suas circunstâncias, para mim ser induzido a persegui-lo. Daí a possibilidade do entendimento humano.»(3) Em suma, e contra o relativismo, Berlin acredita que esta multiplicidade de valores, que se podem perseguir sem deixarmos de ser humanos, não são criações arbitrárias do ser humano, mas são objectivos, ou seja, a sua natureza, a sua persecução faz parte daquilo que é ser humano.

Assim, se o pluralismo e o respeito entre sistemas de valores não necessariamente hostis entre si são válidos, então daí segue-se, consequentemente, a tolerância e o liberalismo, coisa que não decorreria nem do monismo (apenas um conjunto de valores é verdadeiro, todos os outros são falsos), nem do relativismo (os meus valores são meus, os teus são teus, e se houver conflito, paciência, nenhum de nós pode defender que está certo!). «O meu pluralismo político – confessa Berlin – é um produto das leituras de Vico e Herder e de compreender as raízes do Romantismo, que, na sua violenta e patológica forma, foi demasiado longe para ser humanamente tolerado.»(4)

Mas um dos temas com mais impacte na filosofia política contemporânea foi a distinção entre liberdade negativa e liberdade positiva. No primeiro sentido, liberdade é a ausência de obstáculos que bloqueiam a acção humana, é «a área na qual um homem pode agir sem ser obstruído por outros»(5). Para além dos obstáculos criados pelo mundo exterior ou pelas leis biológicas, fisiológicas e psicológicas que governam o ser humano, o importante para Berlin é o facto de existir uma grande falta de liberdade política, em que os obstáculos são feitos pelo próprio homem.

A crítica mais comum a esta noção de liberdade negativa, muito cara a Berlin e um certo liberalismo, é a de que apenas nos devemos libertar dos obstáculos que nos prendem, para ficarmos livres para empreendermos uma acção determinada. Berlin defende-se argumentando que a falta de liberdade, neste sentido básico, se refere ao homem preso e o que o homem quer nesta circunstância é quebrar as suas correntes, evadir-se da sua cela, independentemente de ter em mente uma acção determinada para empreender assim que se encontrar em liberdade. Trata-se, pois, da libertação (“livre de...”) de regras da sociedade ou das suas instituições, de uma qualquer força moral ou física excessivas ou de qualquer coisa que impeça as possibilidades de acção, que, de outro modo, estariam disponíveis.

No outro sentido, a liberdade é entendida como “liberdade para”. Neste sentido, trata-se de perguntar, já que há obstáculos à minha acção erigidos pelo próprio homem, quem determina a acção humana – se pais, professores, padres, a disciplina de um sistema legal, a ordem capitalista, um dono de escravos, um governo. Trata-se de pensar a liberdade no sentido de autonomia e, neste sentido, um indivíduo, apesar de não estar proibido de aceder, por exemplo, a uma boa universidade privada, ele pode não ter dinheiro suficiente para o fazer e, assim, não detém verdadeiramente a possibilidade de o fazer, o poder de agir.

Apesar de acérrimo defensor da “liberdade negativa”, Berlin afirma que não são concepções necessariamente conflituais: ambas são fins últimos a alcançar; ambas são necessariamente limitadas; e ambos os conceitos podem ser pervertidos ao longo da história! Por exemplo, a liberdade negativa pode ser pervertidamente interpretada enquanto economia de laissez-faire, em que, em nome da liberdade, patrões possam, por exemplo, explorar mão-de-obra infantil. Mas foi, segundo Berlin, a noção de liberdade positiva, aquela que foi alvo das maiores perversões da história: com base no pressuposto de que o indivíduo é demasiado ignorante, confuso e determinado pelas suas emoções, deveria obedecer a alguém mais inteligente e racional, que sabe o que é melhor, não só para si próprio, mas também para os outros. Trata-se de uma perspectiva metafísica que perpassa todo o pensamento ocidental, desde o “filósofo-rei” platónico à omnipresente orientação do partido proposta por Marx, e que se enterra no monismo da verdade única.

Daqui ao determinismo histórico é um passo – crença, bastante aceite pelos filósofos ao longo dos séculos, segundo a qual, uma vez que na natureza todos os acontecimentos têm uma causa que pode ser conhecida, também o homem estaria sob o domínio desta ordem determinada, que possibilitaria assim conhecer o que o homem necessariamente é e qual deve ser o seu caminho. Ora, Berlin refuta esta doutrina, mostrando como a moralidade pressupõe responsabilidade e esta, por sua vez, é apenas verdadeiramente possível se houver livre escolha.

É por isso que a perseguição de um ideal é perigoso. A ideia de um mundo perfeito, de uma sociedade perfeita, implica uma harmonia na realização de todos os grandes valores humanos. Mas isso não é possível, pois «alguns valores últimos são compatíveis entre si e outros não são.»(6) Por exemplo, a liberdade perfeita (como deveria ser num mundo perfeito) não é compatível com a igualdade perfeita, tal como conhecimento e felicidade talvez possam não ser. Ora, todos eles são valores humanos últimos, mas como/quando são incompatíveis, não podem ser todos alcançados e, portanto, é preciso fazerem-se escolhas, pensar nos melhores arranjos de valores possíveis.

Assim, «todas as justificações para os ovos partidos na busca da última omelete, todas as brutalidades, sacrifícios, lavagens cerebrais, todas essas revoluções, tudo aquilo que fez deste século [XX] talvez o mais horrível desde outros tempos, em qualquer proporção no Ocidente – tudo isto foi para nada, pois o universo perfeito não é apenas inatingível como é inconcebível, e tudo o que for feito para conduzir a isto está fundado numa enorme falácia intelectual.»(7)
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(1) Isaiah Berlin, “My intellectual path” in Isaiah Berlin, The First and the Last (New York: New York Review of Books, 1999), 29. (A tradução dos excertos citados dos textos de Berlin foi feita, a partir do original, com pouco rigor técnico, pelo que pode naturalmente enfermar de algumas imprecisões.)
(2) Idem o.c. 45-6.
(3) Idem o.c. 51.
(4) Idem o.c. 53.
(5) Idem, “Two concepts of liberty” in Idem, Four Essays on Liberty (Oxford: Oxford University Press, 1969) 122.
(6) Idem, “My intellectual path”, 75.
(7) Idem o.c. 78.

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