quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Dar a pensar...

[Sobre avaliação]

«Se a qualidade da educação fosse plenamente assumida como um desígnio colectivo, de há muito estaria interiorizada uma cultura de avaliação dos desempenhos: dos alunos, dos professores, das escolas, mas também das políticas educativas. A avaliação é um requisito da qualidade.

Sempre houve a avaliação dos alunos feita pelos professores durante o processo de ensino e aprendizagem. Trata-se do que muitos designam por “avaliação formativa”, tendo por objectivo monitorizar o que se aprende de forma a identificar deficiências e a permitir reorientar o esforço de aprendizagem para a sua superação. É uma avaliação de carácter interno e da responsabilidade exclusiva do professor, que de forma contínua compara os desempenhos do aluno com os objectivos previamente definidos. Utiliza para o efeito diferentes instrumentos de avaliação directa ou indirecta: observação diária, exercícios, trabalhos escritos ou exposições orais, testes regulares, etc.

O facto de se tratar de uma avaliação extremamente personalizada na relação professor-aluno e susceptível de grande subjectividade relativamente às exigências e aos objectivos da aprendizagem conduziu à introdução das chamadas “avaliações externas”, visando aferir os níveis de desempenho, não só entre vários alunos, mas também entre várias escolas. Estas avaliações externas são por natureza sumativas e restritivas, ou seja, realizam-se num determinado momento do trajecto educativo e cobrem apenas uma parte dos conhecimentos e competências adquiridos, de forma a avaliar se o nível de desempenho está de acordo com os objectivos da aprendizagem, podendo então ser ou não certificadas.
(…)
Porém, para além de aferir, as avaliações externas assumem outros efeitos. Em primeiro lugar, expressam um referencial a atingir que poderá funcionar como elemento adicional de motivação. Em segundo lugar, são um instrumento de regulação, especialmente quando estamos perante sistemas de ensino massificados que visam impor determinados padrões de qualidade de ensino.

Quando, após a Revolução do 25 de Abril de 1974, se suspenderam os exames nacionais, poucos pensaram de acordo com o que é um sistema de avaliação educacional em qualquer país do mundo. Os exames nacionais eram, aos olhos de muitos portugueses, um símbolo e um instrumento repressivo e selectivo do regime totalitário que acabara de ser derrubado. Tudo o que era avaliação externa ou de carácter sumativo foi sacrificado ao primado da “avaliação contínua”. Este foi um erro de consequências dramáticas para o sistema de ensino em Portugal, só equiparável à extinção dos cursos técnico-profissionais, porque pretensamente discriminavam socialmente os alunos.

Mas o mais grave foi ter-se prolongado o erro por quase duas décadas, mantendo-se ainda no presente algumas marcas desse erro. (…)

Trinta e cinco anos de indecisões e de debates ideológicos em torno de aspectos tão decisivos para a educação é tempo perdido em excesso.

Como é compreensível, os exames e testes não estão desprovidos de inconvenientes: a excessiva orientação das aprendizagens para “passar” no exame, o facto de incidirem apenas sobre uma parte das matérias e das competências ensinadas e desenvolvidas, a forma como são elaborados os testes não ser a mais adequada são argumentos atendíveis. Mas qualquer instrumento de avaliação não está isento de limitações que apenas se superam se tivermos uma visão integrada do processo de avaliação. Esses vários instrumentos completam-se e esclarecem-se mutuamente. Haja quem os queira utilizar de forma ponderada e sistemática.»

David Justino, Difícil é Educá-los (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010) 84-6.

Fotografias

“Fugas”
(WC no Museu Guggenheim, Bilbau, Abril 2009)
© Miguel Portugal

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Dar a pensar...

[Novas tecnologias e qualidade do ensino]

«De há muito que o fascínio pelas tecnologias influenciou as políticas educativas e as práticas pedagógicas. Basta lembrar o papel que a televisão teve no ensino à distância, a importância do vídeo no alargamento dos conteúdos didácticos, a máquina de calcular para a matemática e mais recentemente a importância do ensino assistido por computador, os projectores de imagem, os quadros interactivos ou a Internet para a diversificação dos instrumentos de trabalho e para o acesso a uma informação abundante susceptível de enriquecer qualquer aula em qualquer domínio do saber.

Esse fascínio, porém, raramente correspondeu aos resultados alcançados, especialmente no domínio da qualidade do ensino.

A investigação científica neste domínio não tem sido conclusiva relativamente aos ganhos de qualidade expressos em resultados de testes de avaliação. Reconhece-se que os alunos aprendem mais em menos tempo, demonstram atitudes mais favoráveis à aprendizagem, em especial nas experiências que exigem um elevado nível de raciocínio e de resolução de problemas, tendem a desenvolver práticas mais cooperativas, mas em todas estas situações verificou-se ser decisivo o papel do professor, especialmente o que beneficiou de formação ajustada ao tipo de ensino que praticava.

Há um ganho evidente na familiarização dessas novas tecnologias com as quais vai ter de lidar na sua vida futura. Contudo, as tecnologias não passam de instrumentos, sofisticados e atraentes, sem dúvida, mas tão-só instrumentos. Se o aluno não sabe estruturar um texto argumentativo, não há nenhum processador de texto que o ajude. Se não sabe interpretar o enunciado de um problema, não será a folha de cálculo que o fará. Se não sabe formular um problema, nenhum programa o ajudará a encontrar a melhor solução.

Quer isto dizer que o fascínio pela tecnologia pode rapidamente transformar-se numa ilusão, esta sim extremamente negativa para o processo educativo, se conduzir à desvalorização do que é fundamental, ou seja, o desenvolvimento de competências cognitivas, capacidade de raciocínio lógico, domínio das maneiras de pensar cientificamente conduzidas. Em síntese, saber pensar.
(…)
De pouco vale a tecnologia se ela não for utilizada para o desenvolvimento de processos educativos cada vez mais complexos. É pela educação que se chega à tecnologia e não o contrário. Por isso, torna-se decisivo pensar primeiro naquela e só depois nesta, sob risco de estarmos a criar novas ilusões, tão frustrantes quanto tantas que a antecederam.»

David Justino, Difícil é Educá-los (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010) 83-4.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Acontece

Morreu Carlos Pinto Coelho. Vetusto e dinâmico jornalista, amante das artes e da cultura. Da informação. O seu ícone - Acontece -, foi talvez um dos mais importantes programas culturais de sempre da televisão em Portugal. Aconteceu.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Dar a pensar...

[Sobre o lúdico no ensino]

«Hacerles creer que el trabajo es un juego es tan grave como hablarles de la cigüeña cuando preguntan de dónde vienen los niños. Si toda persona de sentido común sostiene que hay que informar sinceramente a un niño cuando se interesa por el sexo, o por el problema del alcohol, o por el de las drogas, no se entiende por qué se les ha de mentir cuando se les habla del trabajo, del estudio y del esfuerzo. Si es importante que sean conscientes lo más tempranamente posible de que son buenos los hábitos de hacer ejercicio cotidianamente, de tomar alimentos saludables, de prescindir del tabaco y de disfrutar moderadamente del alcohol, también es importante que sepan que el estudiar regularmente, estén o no motivados, es un hábito imprescindible. Un profesor que hurta a los alumnos esta información y que les habla de aprendizaje lúdico es tan irresponsable como si les dijera que el vino y el tabaco son buenos para el desarrollo de un adolescente. Unos harán caso a las buenas recomendaciones y otros no, del mismo modo que unos fumarán y otros no, pero es indispensable que quien se deteriora la salud fumando no pueda después quejarse de que no estaba informado. Todo el mundo tiene derecho a jugar con la salud propia, si quiere, y también con su propio futuro, pero los jóvenes han de saber a lo que están jugando y lo que se están jugando.

Es cierto que las materias se les pueden presentar a los alumnos de forma más o menos amena, pero esto es hacerles la disciplina más llevadera, no eximirles de la disciplina. Por otra parte, no hay más remedio que resignarse a que hay conocimientos indispensables, cuya utilidad es difícil de entender y cuyo atractivo es casi nulo. Es imposible que un niño comprenda la necesidad de comer verduras cuando existen los caramelos y las chocolatinas. Si le dejamos comer lo que quiera y a la hora que quiera, y esperamos a que entienda lo importante de una alimentación sana y regular para que coma saludable y regularmente, ya se habrá estropeado el estómago irreversiblemente. La comparación es pertinente: la inteligencia para aprender es muy temprana, pero la madurez necesaria para comprender lo importante que es aprender es muy tardía. Si esperamos a que tenga esta madurez para enseñarle, los mecanismos de aprendizaje se habrán deteriorado tanto como el estómago de un niño a quien se ha dejado comer lo que le apetecía cuando le apetecía. Por eso siempre es difícil enseñar. Si los alumnos son adultos quieren aprender (digamos, en la jerga a la moda, que están motivados), porque son maduros, pero les cuesta mucho hacerlo porque su capacidad de aprender ya no es lo que era. Si son niños, pueden aprender, pero no quieren porque su inmadurez les impide entender la necesidad de hacerlo.»

Ricardo Moreno Castillo, Panfleto Antipedagógico, pp. 10-11 in:
http://www.lsi.upc.edu/~conrado/docencia/panfleto-antipedagogico.pdf

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Leituras...

…de Dia Internacional dos Direitos Humanos, com Thomas Paine, Rights of Man (New York: Dover Publ., 1999), para recordar um momento crucial da história americana e do Ocidente democrático e um importante texto sobre os direitos humanos. A obra – de 1791 (parte um) e 1792 (parte dois) – colige alguns dos mais importantes panfletos na construção do que viria a ser uma das mais consolidadas e prósperas democracias do mundo – os Estados Unidos da América. Paine, num estilo escorreito e simples, aponta a razão contra aquilo que está mal – política, ética e pragmaticamente – no controlo inglês das colónias americanas.

No seu todo, a obra é uma resposta a todos quantos tentaram denegrir a Revolução Francesa – como foi o caso proeminente de Edmund Burke – e, por antonomásia, toda a revolução libertadora dos regimes monárquicos ditatoriais, bem como se apresenta como uma modular defesa da democracia («the vanity and presumption of governing beyond the grave is the most ridiculous and insolent of all tyrannies. Man has no property in man…»).

Sobretudo apelando aos direitos políticos, a obra não deixa de ser, porém, uma defesa coesa dos direitos humanos em geral, contra todo o tipo de coerção ilegítima, pois é o humano o critério último de toda a organização ética, moral e política – «society is in every state a blessing, but government, even in its best state, is but a necessary evil.»

(Nota em tempo de crise económica: preço - £3,00 U.K.; €3,68 na FNAC!)

Dar a pensar...

«Reason and Ignorance, the opposites of each others, influence the great bulk of mankind. If either of those can be rendered sufficiently extensive in a country, the machinery of Government goes easily on. Reason obeys itself; and Ignorance submits to whatever is dictated to it.

The modes of Government which prevail in the world, are, first, Government by election and representation; secondly, Government by hereditary succession. The former is generally known by the name of republic; the latter by that of monarchy and aristocracy.

Those two distinct and opposite forms, erects themselves on the two distinct and opposite bases of Reason and Ignorance. – As the exercise of Government requires talents and abilities, and as talents and abilities cannot have hereditary descent, it is evident that hereditary succession requires a belief from man, to wich his reason cannot subscribe, and wich can only be established upon his ignorance; and the more ignorant any country is, te better it is fitted for this species of Government.

On the contrary, Government in a well-constituted republic, requires no belief from man beyond what his reason can give. He sees the rationale of the whole system, its origin and its operation; and as it is best supported when best understood, the human faculties act with boldness, and acquire, under this form of Government, a gigantic manliness.»

Thomas Paine, The Rights of Man (New York: Dover Publ., 1999) 89.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Os bons resultados do PISA

Os resultados do PISA 2009 foram ontem divulgados. Portugal subiu a prestação dos seus alunos na leitura, o principal item avaliado, relativamente a 2000. Isso é bom. Já não foi tão boa a reacção política do governo. A ME, Isabel Alçada, ainda procurou o politicamente correcto elogio aos professores, procurando cumprir a, agora impossível, missão de recuperação das boas relações entre governo e professores. José Sócrates não gosta de professores. É natural: os bons professores ensinam e fazem aprender, isto é, mobilizam para o esforço de verdadeira apreensão do saber e desenvolvimento de competências necessárias a usá-lo; os bons professores julgam, para avaliar, e avaliam para melhorar e aumentar o saber adquirido. (Não será por acaso que algumas das medidas educativas dos governos de Sócrates vão no sentido de desvalorizar o saber, a avaliação e a autoridade benigna dos professores e de promover a obtenção de diplomas obviando ao esforço de verdadeiramente saber!)

Para Sócrates, os factores que verdadeiramente terão determinado aqueles “excepcionais” resultados são as políticas educativas.

O cúmulo é colocar pelo meio do discurso a ideia tão contestada dos agrupamentos de escolas, como exemplo de uma medida que tenha contribuído para aquele sucesso. Impossível: os testes do PISA foram realizados em 2009 e a esmagadora maioria dos agrupamentos realizaram-se em Agosto/Setembro de 2010!

Depois, Sócrates comete um erro lógico-argumentativo mais subtil: como foram tomadas algumas medidas de política educativa antes da realização dos testes, então essas medidas são a causa dos bons resultados. Trata-se de um argumento que parece bom, mas não é. Os lógicos medievais chamaram-lhe argumento post hoc, ergo propter hoc, “depois disto, logo por causa disto”: já que isto aconteceu antes, então é a causa para o que aconteceu depois. Mas isto é uma falácia: pode ter acontecido antes, mas não ter necessariamente determinado o que aconteceu depois; uma sequência temporal não é necessariamente uma sequência causal.

É claro que foram tomadas medidas educativas positivas, designadamente o plano nacional de leitura, que podem estar por detrás destes bons resultados. Mas não podemos saber se foi esta, necessariamente, a medida determinante ou o único factor determinante; é mais plausível pensar num conjunto de factores que contribuíram e noutros (outras medidas educativas) que poderiam ter contribuído para resultados efectivamente bons. No próprio programa PISA se chama a atenção para os cuidados a ter quando se retiram conclusões: de facto, a partir dos dados fornecidos pelo PISA podem analisar-se as «potenciais influências» nas performances dos estudantes nos vários países. Mas, o próprio memorando afirma textualmente que o PISA «não pode delinear o trajecto individual de um estudante e não pode, portanto, estabelecer relações causais»; o que pode é comparar o grau de associação de vários factores em diferentes países com os sucessos educacionais (PISA brochure, p. 9, sublinhados meus).

Além das políticas educativas, outros factores podem ter sido determinantes ou até mais determinantes. O que de facto acontece é que, houve uma catadupa de medidas educativas pseudo-reformistas, nada enquadradas com um rumo, necessário, e muito menos explicadas e devidamente fundamentadas junto dos professores. Estes, tantas vezes, trabalham apesar do ME e do desnorte evidenciado nas medidas avulsas e a la carte, que ora vão num sentido ora noutro, ora avançam ora recuam. Os bons professores têm feito, nos últimos anos, entre outros, um esforço para continuarem a utilizar estratégias de ensino motivadoras, mas eficazes, para continuarem a fazer aprender uma população escolar que, no entanto, vive sob uma sociedade que reconhece muito pouco a determinante mais-valia da educação e que, portanto, actua de forma muito pouco eficaz para que os esforços de aprendizagem dêem resultados.

Por isso, o esforço dos professores (muito pouco articulado por políticas educativas produzidas de forma autista, pouco coerentes e pouco eficazes) é um factor a ter em conta, como sublinhou Isabel Alçada, na explicação destes bons resultados dos alunos portugueses em literacia da leitura, factor que não deveria ser menosprezado, como fez o PM, sob pena de se continuar a cavar o fosso entre o governo e os professores, principais actores no processo educativo.

Mas, mais. Se analisarmos os dados do PISA acerca da literacia da leitura (item principal avaliado), mais aprofundada e atentamente (o que nem sempre é feito), podemos encontrar pequenas subtilezas, mas importantes para uma análise mais rigorosa e que nos conduz a conclusões mais sustentadas.

Numa escala de 1 a 698 pontos, Portugal obteve uma classificação de 489, mais 19 pontos do que em 2000 (470), ano com o qual se deve estabelecer a comparação. Outros sete países tiveram bons resultados: Chile, Israel e Polónia e os parceiros Peru, Albânia, Indonésia e Lituânia (todos, mais 20 pontos). Os melhores continuam a ser:

Xangai (China) – 556 (parceiro)
Coreia – 539
Finlândia – 536 (2000-546; 2003-543; 2006-547 – quebra de 10 pontos)
Hong-Kong (China) – 533
Singapura – 526
Canadá – 524
Nova Zelândia – 521
Japão – 520
Austrália – 515
Holanda – 508
Bélgica – 506
Noruega – 503
Estónia e Suíça – 501
Polónia e Islândia – 500

(Apenas países acima dos 499)

A média da OCDE é agora de 493. Conclusão: embora perto, estamos ainda aquém da média da OCDE e, naturalmente, há ainda muitos países (e não apenas do norte da Europa!) bem melhores do que nós.

Depois, parece bom termo-nos aproximado de países como a Suécia (é sempre bom compararmo-nos com os grandes do norte da Europa!). Mas, na realidade, aproximamo-nos da Suécia, não tanto pelo nosso resultado ter sido excepcional, mas porque a Suécia também viu decrescer significativamente o seu resultado (menos 19 pontos), tal como a Irlanda (menos 31), a Austrália e República Checa (menos 13), todos eles, excepto a República Checa, à nossa frente! Conclusão: o nosso resultado não é ainda tão “excepcional” quanto isso.

Há, pois, que prosseguir, de preferência definindo e estabilizando políticas educativas a longo prazo e para além das várias legislaturas, recuperando a comunicação entre ME e professores, apostando numa formação inicial de professores de qualidade certificada, promovendo o reconhecimento social da educação e preparando-nos para uma verdadeira descentralização, com aumento responsável da autonomia das escolas e envolvimento responsável das autarquias e consequente diminuição do centralismo (financeira e mesmo, muitas vezes, pedagogicamente) nefasto do ME.

Fontes:

Dar a pensar...

[A propósito dos excessos da propaganda política demagógica]

«GÓRGIAS – (...) Supõe que um orador e um médico aparecem juntos numa cidade qualquer à tua escolha; se se travar uma discussão na assembleia do povo, ou em qualquer outra reunião, para decidir qual dos dois será eleito médico, eu declaro que o médico será ignorado e preferido o orador, se este assim quiser.

O mesmo se passaria em relação a qualquer outro profissional com quem o orador entrasse em competição: este último conseguirá ser escolhido porque não há assunto algum sobre o qual um homem que sabe retórica não possa falar diante de uma multidão de forma mais persuasiva que um homem de ofício, seja ele qual for. Aqui tens o que é a retórica e qual é o seu poder.
(…)
SÓCRATES – (...) És capaz, dizes tu, de ensinar a retórica a quem desejar aprendê-la contigo?

GÓRGIAS – Sou.

SÓCRATES – E de tal maneira que possa obter o assentimento de uma multidão numerosa sobre qualquer assunto, persuadindo-a sem a instruir?

GÓRGIAS – Perfeitamente.

SÓCRATES – Dizias há pouco que, mesmo em assuntos de saúde, o orador é mais persuasivo do que o médico.

GÓRGIAS – Com efeito, perante uma multidão.

SÓCRATES – Perante uma multidão quer dizer, sem dúvida, perante aqueles que não sabem? Porque, perante aqueles que sabem, é totalmente impossível que o orador seja mais persuasivo do que o médico.

GÓRGIAS – Tens razão.

SÓCRATES – Se ele é mais persuasivo do que o médico, será então mais persuasivo do que aquele que sabe?

GÓRGIAS – Absolutamente.

SÓCRATES – Sem ele próprio ser médico, não é verdade?

GÓRGIAS – Sim.

SÓCRATES – Aquele que não é médico ignora o que sabe o médico.

GÓRGIAS – Evidentemente.

SÓCRATES – Assim, quando o orador triunfa do médico, é um ignorante falando perante ignorantes que prevalece sobre o sábio? É exactamente isso que acontece ou é outra coisa?

GÓRGIAS – É isso, pelo menos neste caso.

SÓCRATES – Também em relação às outras artes, o orador e a retórica têm, sem dúvida, a mesma vantagem: a retórica não tem necessidade de conhecer a realidade das coisas, basta-lhe uma certa técnica de persuasão que ela inventou para parecer, perante os ignorantes, mais sábia do que os sábios.

GÓRGIAS – Não é uma maravilhosa facilidade, Sócrates, sem qualquer estudo das outras artes, graças unicamente a esta, poder estar à altura de todos os especialistas?»

Platão, Górgias 456b-c, 458e-459c.

No dia contra a corrupção

Foram hoje (Dia Internacional de Combate contra a Corrupção) divulgados na imprensa nacional os resultados do Barómetro Global da Corrupção 2010, uma sondagem mundial da Transparency International, que inquiriu mais de 91 mil pessoas em 86 países e territórios. Os resultados não surpreendem, neste mundo cada vez mais alheado de toda a reflexão ética (mínima que seja) prévia à acção e perfeitamente compatível com uma vida individual e colectiva moderna, despreconceituosa e autónoma:


Curiosa, mas valha-nos algumas ilhas salvíficas, é a percepção que os portugueses têm dos professores, militares e religiosos. Serão a educação, a defesa e a gestão da vida e da morte coisas demasiado sérias? Mas há outras áreas da acção humana colectiva (a política, a justiça) tão sérias como estas e, no entanto...!

Dar a pensar...

[Sobre o verdadeiro ensino para a igualdade]

«También se dirige este panfleto a todos los preocupados por lo políticamente correcto, a los que piensan que defender una enseñanza rigurosa, exigente y disciplinada no es de izquierdas. Las cosas son exactamente al revés. Una enseñanza presuntamente lúdica, donde no se inculca el hábito de estudio, se convierte en un aparcamiento para pobres, donde están entretenidos hasta que les llegue la hora de convertirse en mano de obra barata. Para que la igualdad de oportunidades sea efectiva, ha de haber una enseñanza en la que cada uno pueda demostrar su valía, su inteligencia y su capacidad de trabajo. Quien defienda lo contrario, está hurtando a los muchachos de origen modesto la única oportunidad que tienen de estudiar en serio y de competir en parecidas condiciones con los que proceden de familias más favorecidas.»

Ricardo Moreno Castillo, Panfleto Antipedagógico, pp. 2-3 in: http://www.lsi.upc.edu/~conrado/docencia/panfleto-antipedagogico.pdf

domingo, 5 de dezembro de 2010

Escrever bem sobre o mal

Um post bem delicioso este, elucidativo da mísera decadência em que vivemos. Sim, é sobre os abusos de poder de uma casta inferior de homens e mulheres a vegetarem à custa do bem público, quais parasitas vampirescos a extasiarem com os últimos estremeções, embora sem a mínima classe, que não fosse essa benesse da árdua "carreira" político-partidária de esmifrar erário público e angustiariam no dilema de ou morrerem à fome ou morrerem às suas próprias mãos. (Bom, isto, no fundo, é um falso dilema: sempre poderiam trabalhar!)

Vai continuar a ser bom ler estas coisas. (Isto até é divertido!)

Ave, César! Viva o socialismo!

O governo de José Sócrates, em desespero, com o sector financeiro do Estado à beira de um colapso, corta 5% dos salários dos funcionários públicos... portugueses.

Carlos César, qual magnânimo imperador do burgo, resolve abrir os cordões à bolsa - recheada, pelos vistos - dos contribuintes portugueses e atribui uma compensação remuneratória, em igual valor do retirado pelo governo liderado pelo companheiro socialista José Sócrates, aos 3.700 funcionários públicos dos Açores.

Como todos os açoreanos são portugueses e como a lei, a ser justamente aplicada, é para todos, então não se vê como possa haver uma excepção para estes portugueses especiais!

O despodurado imperador do socialismo insular, ainda tem o desplante de acusar Cavaco Silva de colocar os portugueses uns contra os outros. Mas quando alguém toma uma decisão que coloca em causa, de forma inequívoca, o princípio constitucionalmente consagrado da equidade, como é que se diz? Diz-se que coloca em causa o princípio constitucional da equidade. Carlos César, ele próprio e não Cavaco, coloca os portugueses do continente contra os dos Açores com esta sua medida descaradamente imoral, embora toda a gente perceba que quem está em questão é apenas e só um açoreano muito particular - Carlos César. (Nesta decisão, até conseguiu superar o seu excêntrico vizinho insular!)

Mas esteve bem Carlos César, quando explicou a sua medida inexplicável com a controversa mas sempre fácil bandeira socialista da discriminação positiva, pois, assim, acusa directamente José Sócrates de se ter esquecido dela! No meio de tanta incompetência, Carlos César esqueceu-se, no entanto, que justamente um corte percentual mantem as justas diferenças - apenas diminui, de igual modo, para todos, os salários. Pelos vistos, a concepção insular de "discriminação positiva" envolve uma imunidade matemática, estranha a qualquer sistema político moderno orientado por princípios de justiça, que permite ao cidadão que dela usufrui manter sempre o mesmo rendimento, independentemente da situação financeira do Estado em que vive!

É de se lhe tirar o chapéu. É caso para se dizer: ave, César! Ou então: viva o socialismo!, que em tempos era associado a ideias como a de igualdade. Isso eram outros tempos; agora é tempo de incompetências abstrusas, mesmo que disfarçadas, como esta, de discriminação positiva "a la carte" - dizem que é democracia!

Dar a pensar...

[Sobre uma refutação mais conservadora da “Educação Nova”]

«La llamada de atención se dirige a todos, pero en especial a los forjadores y entusiastas de una reforma educativa que, en un tiempo record, ha conseguido que la cultura de los alumnos baje hasta niveles alarmantes, que la mala educación en la vida cotidiana de los centros suba hasta cotas vergonzosas, y que los profesores estén más hartos, deprimidos y desesperados que nunca. Sus defensores dicen que, con todos sus defectos, gracias a ella se ha conseguido la educación para todos. Esto es rigurosamente falso. En una clase en la que cada uno hace lo que quiere, porque la administración no respalda la autoridad del profesor y al mismo tiempo protege al alumno que conculca el derecho de aprender de los demás, no se está impartiendo educación, se esta repartiendo basura. [Se] dice (…) que se han de fomentar los comportamientos democráticos. ¿Qué clase de comportamiento democrático es éste, en el que una minoría de alborotadores puede imponer impunemente su ley a los demás? Tampoco ha conseguido, como suele decirse, una educación igualitaria, porque cuando la enseñanza pública se degrada hasta tales extremos, salen ganando los que pueden pagarse un colegio privado. Mucho menos es cierto que los nuevos problemas que se plantean al educador son debidos a una evolución social que ha gestado una juventud más conflictiva. No, si los jóvenes son más díscolos y apáticos que nunca, no es debido a ningún cambio social, es el resultado de una educación equivocada. Se argumenta que hoy los hijos lo tienen todo, y por ello no valoran el trabajo que cuestan las cosas. Es posible que esto sea así, pero la prosperidad no ha suprimido la palabra “no” del idioma, de modo que si los hijos lo tienen todo es debido a la desorientación de los padres, que no se han enterado de lo sano que es decir “no” de cuando en cuando. También se dice que las familias separadas crean problemas que no existían antes. Es cierto, pero los padres que se separan lo hacen porque dejan de quererse, o porque la convivencia es imposible. En cualquiera de ambos casos, no es seguro que el hijo salga perdiendo con la separación. Otra novedad es que los padres están mucho tiempo ausentes. Pues razón de más para aprovechar el poco tiempo que pasan con los hijos para inculcarles algunos modales. Enseñarles a pedir las cosas por favor y a dar las gracias, a llamar a una puerta antes de entrar, a sonarse los mocos en lugar de sorberlos, y a ceder el asiento a las personas mayores en los lugares públicos, no requiere tantas horas de dedicación.»

Ricardo Moreno Castillo, Panfleto Antipedagógico, pp. 1-2 in: http://www.lsi.upc.edu/~conrado/docencia/panfleto-antipedagogico.pdf

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Nevão político

(Pedestre passa por carros cobertos de neve
em Estocolmo, na Suécia. Daqui)
Desde segunda feira, que a neve começou a cair abundantemente, sobretudo no norte e centro do país, obrigando ao corte de estradas, dificultando a deslocação para os locais de trabalho e quase "paralisando" alguns sectores do país.

Há condições objectivas para que muitas pessoas tenham ficado em casa - de facto, muitas estradas, sobretudo secundárias, terão ficado intrasitáveis ou, pelo menos, sem condições para, por exemplo, a circulação de transportes escolares. Mas também há condições subjectivas para muitas pessoas tentarem "fazer gazeta" - ainda vamos sendo, contra todas as evidências que obrigariam, sobretudo agora, a um maior empenho, um povo bastante dado a procurar fugir ao trabalho. (Aqueles cujas empresas dependem mesmo do seu trabalho, sob pena de serem despedidos, esses naturalmente têm que fazer um esforço!)

As mentalidades são difícies de mudar. Mas ajudaria se as condições objectivas fossem alteradas. E isso é possível. As autarquias cujas populações têm sido mais afectadas por estas condições climatéricas, recorrentes nos últimos anos, têm que começar a pensar seriamente em apetrechar-se com meios eficazes de limpeza das estradas. O Estado sempre pode trocar alguns daqueles "blindados atrasados", por veículos limpa-neves. As autarquias, além disso, podem fazer, por exemplo, contratos de prestação de serviços sazonais com privados, que, por essas aldeias fora, tenham as adaptações necessárias (fornecidas pelas autarquias), para adaptarem aos seus tractores e outras máquinas pesadas e, assim, poderem limpar, prontamente, as principais estradas. (Não esquecer a formação prévia, claro.)

Como viverão os países mais ricos do norte da Europa, com estas adversidades geladas?!

Ideias e empenho de todos, precisam-se. Continuar à espera de um nevão para não ir trabalhar é que não pode ser mais. Isso seria uma atitude terceiro-mundista e nós... bem, nós cá estamos na cauda da Europa!

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Dar a pensar...

[Sobre formação, recrutamento e desempenho de professores]

«Os professores têm um papel central nos processos de aprendizagem: são eles que ensinam e terão de ser eles a fazer aprender. Quando minimizam este papel, dificilmente poderão assumir-se como professores. Por isso, uma parte significativa da qualidade do ensino está dependente da qualidade do seu desempenho e da sua competência.

Até há bem pouco tempo não havia nenhum sistema que nos permitisse avaliar o desempenho dos docentes, a sua qualidade profissional, o valor do seu contributo para a concretização da missão central da escola. Duvido que tal sistema já exista e que permita reconhecer o mérito dos melhores, valorizar o trabalho dos que são apenas bons e afastar aqueles que, por razões objectivas, não podem continuar a exercer a profissão de professor.

O défice de avaliação de desempenho docente e claramente uma das causas do défice da qualidade da educação em Portugal.

O Estado de há muito prescindiu do direito de seleccionar os candidatos à docência. O argumento que é correntemente aduzido para justificar a situação baseia-se no facto de ser o próprio Estado o responsável pela formação inicial dos professores, o que desde logo os certifica. Estamos perante uma meia-verdade. O facto de uma grande parte dos candidatos a professores provir de estabelecimentos públicos do ensino superior não apaga o facto de esses estabelecimentos possuírem autonomia científica e pedagógica, o mesmo se aplicando aos estabelecimentos de ensino privado que também formam professores. A qualidade dos seus formandos nunca foi certificada.

Nos finais da década de 90, lançou-se o sistema de acreditação dos cursos de formação de professores e educadores, mas o resultado deste esforço meritório foi uma acreditação generalizada de todos os cursos. A competição desenfreada entre estabelecimentos de ensino superior, visando captar mais e mais alunos, resultou na redução dos níveis de exigência e da qualidade da formação, bem como na mais que esperada inflação das classificações de curso de forma a beneficiar os seus alunos em detrimento dos da “concorrência”. Se o único critério de admissão à docência era a classificação de curso, não será de estranhar os estratagemas a que recorreram para que fossem beneficiados os “seus” candidatos.

Mais eficaz tem sido o sistema de certificação profissional adoptado por vários países, assente em provas individuais de acesso e em processos extremamente rigorosos de avaliação de estágios profissionalizantes.

O processo de recrutamento dos professores, bem como de progressão na carreira docente, é claramente uma pedra de toque de um dos mais importantes pilares da qualificação do ensino em Portugal. As tensões corporativas que marcaram as lutas dos professores nos últimos anos poderão ter como consequência ficar tudo na mesma sem que alguém se atreva a “mexer” no assunto, sob risco de fazer desmoronar o pouco que ainda ficou de pé.

Felizmente, ainda há um vasto grupo de professores que sustenta as escolas e o sistema de ensino através do seu profissionalismo, dedicação e brio. A não ser isso, difícil seria imaginar o estado a que estaríamos condenados.

Objectivamente, nada nos ajuda a responder à questão: qual o valor de um bom professor no sucesso de um aluno? E qual o contributo de um mau professor para o insucesso? As escolas e os alunos sabem, caso a caso, quem são os melhores. Impossível será estimar, de forma rigorosa e objectiva, quanto é que eles representam no conjunto do corpo docente e qual o potencial de qualificação que poderiam representar para o ensino em Portugal.»

David Justino, Difícil é Educá-los (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010) 81-2.