Mais uma pequena delícia, que mostra como muitas instituições superiores de formação inicial de professores também se “adaptaram ao mercado” do romantismo e construtivismo ingénuo, tão caros ao ME português e, assim, deram o seu contributo para um verdadeiro estado de surrealismo pedagógico que tem assolado a Escola:
«Uma professora da área de ciências do terceiro ciclo do Ensino Básico (Sintra, 2005) pede aos seus alunos para inventarem uma experiência em que ponham à prova o seu espírito científico. Uma aluna, naturalmente motivada por alguma coisa que ouviu sobre a velocidade da queda dos corpos, resolve fazer experiências para verificar se bolas de diferentes pesos caem de formas diferentes. Faz a experiência com bolas de ping-pong e bolas de ferro e conclui que as segundas caem mais rapidamente. A professora fica muito contente, diz à aluna para apresentar o trabalho num concurso de ciências para jovens e a rapariga apresenta em público os seus resultados. Ora, o que a estudante acabou de fazer foi regredir até Aristóteles (384-322 a.C.). A professora, evidentemente, não conhecia a polémica sobre a queda dos corpos nem a célebre lei da queda dos graves.
No século IV a. C., Aristóteles dizia que os corpos caem tanto mais rapidamente quanto mais pesados são. Quase dois milénios depois, numa série de experiências célebres, muito conhecidas, sobretudo, através do episódio, naturalmente romanceado, da torre inclinada de Pisa, Galileu Galilei (1564-1642) mostrou que os corpos em queda livre caem independentemente do seu peso, e explicou que a observada diferença de velocidades se deve ao atrito, à resistência do ar. [Ver, por exemplo, Stillman Drake, History of Free Fall: Aristotle to Galileo, Toronto, 1989.]
Estas experiências clássicas de Galileu desempenharam um papel na revolução científica que apenas tem paralelo nas conjecturas e observações astronómicas que originaram a revolução heliocêntrica. Evidentemente, a professora nada sabia deste assunto e ajudou a inculcar na aluna e nos seus colegas uma ideia errada que agora custará mais a apagar.
A experiência poderia ter dado resultados altamente positivos se a professora, ao invés de abandonar por completo a aluna, tivesse sabido guiá-la, sugerindo-lhe uma experiência que pudesse levar a conclusões pedagógicas úteis e, finalmente, soubesse criticar os resultados. O ensino experimental em que os jovens devem ser mergulhados deve estar adequado ao tempo, recursos e conhecimentos limitados de que os estudantes dispõem. As experiências pressupõem planeamento e conhecimentos, sobretudo por parte do professor, e não são sinónimo de espontaneidade nem devem ser uma promoção da falta de rigor. Por detrás de tudo isto, além de ignorância científica e pedagógica, está um desrespeito pela ciência e pelo saber e uma extraordinária arrogância. Acreditando, ou fingindo acreditar, que os jovens são capazes de desenvolver um espírito crítico e experimental que se inspira no vazio e não no conhecimento, o romantismo pedagógico quer fazer crer que um jovem, sem preparação de alguma espécie, é capaz de chegar a conclusões científicas que custaram à humanidade muitos anos e muito esforço a conquistar. Este salto de etapas pedagógicas é mais outra manifestação de uma atitude romântica anti-intelectual inspirada no naturalismo de Rousseau.»
In: Nuno Crato, O “Eduquês” em Discurso Directo – Uma crítica da pedagogia romântica e construtivista (Lisboa: Gradiva, 2006) 6ª edição, pp. 87-9.
Sem dúvida que um dos fins do ensino é o desenvolvimento, a um tempo, do espírito criativo e científico. Mas isto… talvez seja demais e, de qualquer modo, pouco contribua efectivamente (talvez, bem pelo contrário) para esse duplo fim!
«Uma professora da área de ciências do terceiro ciclo do Ensino Básico (Sintra, 2005) pede aos seus alunos para inventarem uma experiência em que ponham à prova o seu espírito científico. Uma aluna, naturalmente motivada por alguma coisa que ouviu sobre a velocidade da queda dos corpos, resolve fazer experiências para verificar se bolas de diferentes pesos caem de formas diferentes. Faz a experiência com bolas de ping-pong e bolas de ferro e conclui que as segundas caem mais rapidamente. A professora fica muito contente, diz à aluna para apresentar o trabalho num concurso de ciências para jovens e a rapariga apresenta em público os seus resultados. Ora, o que a estudante acabou de fazer foi regredir até Aristóteles (384-322 a.C.). A professora, evidentemente, não conhecia a polémica sobre a queda dos corpos nem a célebre lei da queda dos graves.
No século IV a. C., Aristóteles dizia que os corpos caem tanto mais rapidamente quanto mais pesados são. Quase dois milénios depois, numa série de experiências célebres, muito conhecidas, sobretudo, através do episódio, naturalmente romanceado, da torre inclinada de Pisa, Galileu Galilei (1564-1642) mostrou que os corpos em queda livre caem independentemente do seu peso, e explicou que a observada diferença de velocidades se deve ao atrito, à resistência do ar. [Ver, por exemplo, Stillman Drake, History of Free Fall: Aristotle to Galileo, Toronto, 1989.]
Estas experiências clássicas de Galileu desempenharam um papel na revolução científica que apenas tem paralelo nas conjecturas e observações astronómicas que originaram a revolução heliocêntrica. Evidentemente, a professora nada sabia deste assunto e ajudou a inculcar na aluna e nos seus colegas uma ideia errada que agora custará mais a apagar.
A experiência poderia ter dado resultados altamente positivos se a professora, ao invés de abandonar por completo a aluna, tivesse sabido guiá-la, sugerindo-lhe uma experiência que pudesse levar a conclusões pedagógicas úteis e, finalmente, soubesse criticar os resultados. O ensino experimental em que os jovens devem ser mergulhados deve estar adequado ao tempo, recursos e conhecimentos limitados de que os estudantes dispõem. As experiências pressupõem planeamento e conhecimentos, sobretudo por parte do professor, e não são sinónimo de espontaneidade nem devem ser uma promoção da falta de rigor. Por detrás de tudo isto, além de ignorância científica e pedagógica, está um desrespeito pela ciência e pelo saber e uma extraordinária arrogância. Acreditando, ou fingindo acreditar, que os jovens são capazes de desenvolver um espírito crítico e experimental que se inspira no vazio e não no conhecimento, o romantismo pedagógico quer fazer crer que um jovem, sem preparação de alguma espécie, é capaz de chegar a conclusões científicas que custaram à humanidade muitos anos e muito esforço a conquistar. Este salto de etapas pedagógicas é mais outra manifestação de uma atitude romântica anti-intelectual inspirada no naturalismo de Rousseau.»
In: Nuno Crato, O “Eduquês” em Discurso Directo – Uma crítica da pedagogia romântica e construtivista (Lisboa: Gradiva, 2006) 6ª edição, pp. 87-9.
Sem dúvida que um dos fins do ensino é o desenvolvimento, a um tempo, do espírito criativo e científico. Mas isto… talvez seja demais e, de qualquer modo, pouco contribua efectivamente (talvez, bem pelo contrário) para esse duplo fim!
3 comentários:
Um excerto bem escolhido, Miguel.
Nuno Crato é uma pessoa esclarecida. O livro citado deveria ser de leitura obrigatória para todos os que, de algum modo, se interessam pelo ensino.
Passe a publicidade, mas não posso deixar de referir 3 livros - tammbém do Nuno Crato - que vou lendo nas poucas horas livres: "O desatre no ensino da Matemática: como recuperar o tempo perdido" e "A Matemática das coisas" e "Ser Professor - Rómulo de Carvalho"
No primeiro, Crato é organizador e apresenta textos de gente igualmente desiludida com o rumo que alguns pseudo-iluminados imprimiram à educação.
O segundo é delicioso.Experimentem.
O terceiro tem textos de Rómulo de Carvalho, que eu vejo sempre como Gedeão!
E quem ainda não leu "A pedagogia da Avestruz" de Gabriel Mitha Ribeiro, deve ler com urgência. Talves olhem para o ensino com outros olhos.
Manoel
Ops !!!!!!!!!!
Talvez...e não talves
Esclarecimento: este "ops" deve ser entendido como uma interjeição de alguém que se apercebeu de uma lapso cometido e não tem correlação alguma com ops, revista de Manuel Alegre recentemente colocada nas estantes!
:)
Manoel
Agradeço, Manoel, as tuas excelentes recomendações bibliográficas, que são de ler, claro. E claro que concordo que muitos de nós talvez devessem ler um pouco mais... É que o verdadeiro professor não deixará nunca de ser um apaixonado eterno "estudante"!
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