sexta-feira, 4 de julho de 2008

Quando a Escola deixar de ser Escola

Maria Filomena Mónica escreve mais um texto imperdível, a propósito dos exames de Português, na elaboração do qual teve a oportunidade de se deleitar (e connosco partilhar) com algumas das monumentais (des)construções pseudo-científico-pedagógicas que brotam dos doutos autores de programas, exames e critérios de correcção dos mesmos, que têm vivido extraordinários anos de fecunda emoção intelectual no Mi(ni)stério da Educação de Portugal. Sim, é verdade: a doença do romantismo rousseauniano e do construtivismo ingénuo (vulgo "eduquês") ainda vai (des)orientando o ensino em Portugal. (Não é por acaso que as fontes bibliográficas de que suas exas. se munem para fabricar excelsas obras programáticas, muitas delas compostas de citações de citações, são maioritariamente em língua gaulesa, e bem menos em língua inglesa! É que os autores anglo-saxónicos ainda contaminados por este tique de pseudo-cientificidade pedagógica, são bem menos, estando o grosso da inteligência, sobretudo em terras do Tio Sam, a fazer arreigar, já há muito, o estudo da pedagogia em psicologia experimental e não na bela citação de citação, que tantos doctor mirabilis tem diplomado por essas universidades fora!).

O texto de opinião de MFM, publicado no Público, é um crítico mas informado grito de revolta diante de uma escola vergonhosamente ao serviço da propaganda de um governo constituído por pessoas que dão mostras de uma grotesca falta de capacidade moral para ocupar cargos públicos, quando usam um dos bens, senão o bem mais valioso de que a humanidade talvez tenha à sua disposição enquanto espécie, que é a educação das crianças e jovens, para fazer inculcar ideologia de poder (que é, entre outras, a ideologia da facilidade contra o esforço), para manipular consciências, para aniquilar competências críticas e autónomas, tudo isto a arrepio das válidas chamadas de atenção da inteligência, dos intelectuais, de uma elite cada vez mais arredada da sua função de contribuição para auxiliar na orientação da sociedade.

A ME, Maria de Lurdes Rodrigues (que até tentou fazer algumas reformas necessárias), arrisca-se não só a vir a ser lembrada como a que mais tempo conseguiu ocupar o cargo, mas também como aquela que pode ter dado uma das mais contundentes machadadas na Escola enquanto Escola em Portugal. Só mesmo os professores mais pacientes e imbuídos do espírito de missão humanista subjacente ao munus de ensinar a ser humano, com grande esforço de luta contra os problemas educacionais, mas também contra as directrizes ministeriais, muitas delas perfeitamente aberrantes (faça-se o favor de consultar programas e outros documentos provenientes da 5 de Outubro!), é que têm vindo a evitar o completo aniquilamento de uma instituição escolar, cujos problemas, ao invés de terem sido enfrentados por este governo, foram mascarados, apedrejados de paralisante retórica e, pura e simplesmente, num acto de gritante irresponsabilidade, atirados para a frente.

Quando a Escola deixar de ser Escola... passará a ser (quando já não o é, em muitos casos!) um local surrealista onde se fará de conta que os meninos, não podendo ser de ouro, se contentarão em serem eternamente bons selvagens! Até um dia...

2 comentários:

Anónimo disse...

Nao deixa de ser interessante uma pessoa manter-se informada do que "por ai vai". Mesmo quando se tem uma percepçao forte e conformadamente enraizada, como é o meu caso, sobre o "para onde isto vai", às vezes é impossivel nao ficar surpreendido ao descobrir "onde isto jà vai". A leitura do artigo no Publico "Os testes de Português podiam ser substituídos por uns papeluchos como os do Totobola " de Maria Filomena Monica a 04 de Julho de 2008, obrigou-me a lguma reflexao sobre este assunto, que nao adivinhava estar ja tao avançado.

A prodigalidade legislativa do Governo, empurrado pelo monstro europeu, jà nao é surpresa para ninguém, mas a velocidade com que ela se antecipa à propria realidade nao deixa de ser impressionante. No caminho da degradaçao cultural e linguistica que se tem vindo gradualmente a desenvolver no todo da sociedade, o poder - nao suficientemente contente com o facto que ja nao se encontre hoje em dia ninguem, a bem dizer, com menos de 25 ou mesmo 30 anos com quem se possa ter uma conversa interessante, numa palavra, que possua uma linguagem oral complexa - decidiu finalmente deixar-se de arcaismos e de visoes romanticas sobre essa "tradiçao humanistica" de que fala a autora do artigo e assumir a liderança do processo: daqui a 15 ou 20 anos, nao so os jovens nao saberao falar reflectidamente, mas nem mesmo poderao jà ler ou escrever dessa forma. O que é impressionante é que estes saudosistas d'outros tempos, que falam da "gloria da cultura ocidental", nao viram (nao quiseram ver!) que essa cultura esta morta e por enterrar (nos museus, nas bibliotecas), e que o seu cadàver, apesar de assombrar ainda como um espectro os tempos modernos nao pode contudo - e talvez infelizmente (confesso) - ser ressuscitado. Esta elite intelectual que tendo lido Orwell nao o soube "perceber" (identificar, como diria um historiador burocrata) na realidade, antes que essa mesma realidade lho espetasse nas trombas: ninguem se indignou quando a ortodoxia se apoderou das ciencias naturais porque elas sao exactas (ainda um dia me haveriam de explicar em que é que isso torna o facto mais aceitavel); depois quando através da porta da "exactidao" e pela imposiçao da matematica (o calculo, na analise; a estatistica, na grande efabulaçao da contabilidade nacional) ela se emparou da economia e de seguida, pouco a pouco, e pelas mesmas travessas, das ciencias socias (se bem que a historia tenha sido, de um certo modo, precisemos, poupada) - poe-se agora a bradar aos ceus porque essa mesma ortodoxia quer penetrar, atraves do ensino, na linguagem e no pensamento. Um vislumbre do grande delirio orwelliano, duma lingua construida burocraticamente, apresenta-se-nos jà no real e nos fazemos um escabeche. Este infantilismo nao ajuda. Nao ajuda porque distrai e priva a atencao do essencial: a intromissao na lingua, como instrumento ultimo de controle, é a consequencia logica da evoluçao duma ortodoxia à qual todo os outros espaços foram deixados livres, e que os tendo mais ou menos, segundo o caso, preenchidos, se volta para a origem mesma do pensamento. Privando a atençao deste facto essencial esta analise é muito "pertinente" mas nao passa dos jornais, nao remete para as suas causas e nao tira consequencias, fica-se, morna e impotente, por uma denuncia simplista do secretario de estado e dos seus anoes, que nao sao responsaveis pela situaçao historica actual; numa palavra, restringe-se ao jogo mediatico.
Orwell, observandoo nazismo e o comunismo, compreendeu que um povo privado de cultura e de historia, estaria à merce da opressao mais esmagadora e da tirania mais humilhante. Esta é a liçao do seculo XX, ele teve o merito de a descrever tao rapidamente quanto humanamente possivel. Herman Hesse previu a guerra (stephenwolve), mas talvez nem suspeitasse da possibilidade de um tal totalitarismo. Orwell foi um visionario, e talvez estivesse certo quando suponha que um povo privado nao so de historia e de cultura, mas tambem de linguagem propria, tornar-se-ia entao vitima de uma tirania certamente eterna porque nao questionavel.
O problema, com o totalitarismo moderno é que ele nao tem um rosto cruel. Esta aparencia simpatica de "herdeiro do liberalismo" (é-o? nao o é?; questoes muito interessantes mas que deixaremos para uma outra ocasiao) tem-no escamoteado, mas à medida que ele se desenvolve e fortifica vai ficando mais visivel, porque a vida vai ficando mais insuportavel. E acima de tudo, ha que tirar as consequencias, de dizer alto e bom som que é de totalitarismo que se trata (em Portugal e em Bruxelas) e de nao fingir acreditar que a acçao do governo nao é consequente com a sua politica e com a realidade social actual : quando Maria Filomena Monica se faz de indignada porque estes jovenzinhos assim formados nao arranjarao emprego, revela toda a naividade do tipo de pessoas que tem a destreza intelectual para analisar a realidade mas, por um defeito emocional, por uma identificaçao romanticamente idealizada a essa "civilizaçao ocidental" que eles creem ainda a mesma da sua juventude, nao sao capazes de a enfrentar tal como ela se lhes apresenta, refugiando-se assim nesse tipo de subterfugios. Se, Maria Filomena Monica, acha mesmo que estas criancinhas idiotas que estao a sair da escola como da linha de montagem, nao vao arranjar emprego; se acha mesmo que eles estarao desactualizados no seu tempo, gostaria de lhe perguntar se jà se deu ao trabalho de ir ao centro de emprego?, ou simplesmente de consultar uma pagina de internet duma qualconque agencia de trabalho temporario? Se o fizesse aperceber-se-ia que para os empregos, os ateliers de formaçao e todas essas inutilidades que por ai andam, nao saber falar, ler e escrever duma forma reflectida, numa palvra nao saber pensar, nao é senao uma vantagem.

P.S.: Peço desculpa pela acentuaçao mas estou a escrever do estrangeiro. Devo tambem dizer que gostei muito do seu artigo, talvez o unico verdadeiramente interessante de todos os blogs que se debruçaram sobre o artigo de MFM. cumprimentos

Miguel Portugal disse...

Depois de tão frutuosa leitura do seu comentário, apenas me resta agradecer a Afonso Pedro Barbosa a lúcida e, se não trágica, contundente análise da tentacular tentativa do poder instituído de domínio do indivíduo, por via da sua manipulação através da educação e do ensino, que, querendo-se libertador, vai, contudo, amordaçando.
Muito grato.