Quando, há algum tempo atrás, se elevou a bandeira da liberdade de expressão para legitimar as famosas “caricaturas de Maomé” contra a rebelião dogmática e “atrasada” dos fundamentalistas islâmicos, tudo pareceu demasiado simples: o caricaturista tinha o direito fundado na liberdade de expressão de caricaturar o profeta e o povo islâmico não tinha o direito de o impedir. Na altura talvez tenha sido dos poucos a lembrar o facto de civilização ocidental e mundo islâmico viverem em dois paradigmas culturais e ético-políticos de tal modo distintos, cuja incomensurabilidade exigia algum cuidado nas apressadas comparações – apesar do princípio liberal da liberdade de expressão ser, no Ocidente, um princípio inquestionável, a sua universalização, não sendo fácil, requer uma prudência acrescida (talvez fosse bom ter consciência de que tal princípio muito dificilmente poderá ser valorizado, muito menos de forma imposta, no mundo islâmico ainda muito pouco secularizado).
Agora, o Nobel português da literatura vem, no seu recente
Caim e mais uma vez, criticar e até, ao que parece, parodiar a Bíblia. Mas cidadãos de um país integrado, não só geográfica mas também historicamente, na secularizada civilização ocidental reagem na desmesura de quem não lhe permite, ao escritor, a liberdade de exprimir as suas ideias.
Este caso faz-me lembrar a defesa que, no séc. XIX, o filósofo liberal britânico John Stuart Mill fez da liberdade de expressão, na sua obra
Sobre a Liberdade:
«(…) o mal particular em silenciar a expressão de uma opinião é que constitui um roubo à humanidade; à posteridade, bem como à geração actual; àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que a sustentam. Se a opinião for correcta, ficarão privados da oportunidade de trocar o erro por verdade; se estiver errada, perdem uma impressão mais clara e viva da verdade, produzida pela sua confrontação com o erro – o que constitui um benefício quase igualmente grande.»
O euro-deputado do PSD que veio “pedir a cabeça” do ateu militante José Saramago (
aqui), incorre num erro grosseiro, que parece tomar conta de muitos cidadãos que ascendem à vida pública – uma pobreza confrangedora de pensamento e uma ignorância da história das ideias políticas, escolhos que provocam o tropeço em contradições e o atropelo dogmático e incrivelmente inconsciente dos princípios estruturantes da própria civilização em que vivem e ajudam a gerir a vida pública dos seus concidadãos.
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É claro que a liberdade de expressão tem limites, como qualquer defensor lúcido desse princípio fulcral sabe (como o próprio Mill! Veja-se, a propósito, a crónica de hoje de
João Cardoso Rosas no "i"). Mais complicado é definir, fundadamente, tais limitações. Muito diferente é arrasar grosseiramente o próprio princípio da liberdade: ao invés de discutir a crítica saramaguiana, ataca-se a pessoa, incorrendo na, infelizmente, muito usada falácia
ad hominem, que torna o argumento completamente inválido. Mário David não só veio assim ajudar a alimentar uma polémica comercialmente rentável para o escritor, como veio mostrar o quão longe da civilização democrática liberal se encontra o pensamento e a acção de muitos dos cidadãos portugueses, incluindo aqueles em que se depositam, através de um acto gerador de representatividade, as grandes responsabilidades públicas.
Só nos resta esperar que alguns Saramagos continuem a exprimir livremente as suas ideias problematizadoras das crenças mais fundamentais da nossa civilização e que sejamos livres de o ler ou de o não ler. Mas espera-se também que haja capacidade de, reflectindo em tais críticas, mostrar, com elevação e qualidade intelectual, que, se for o caso, são críticas inválidas.