Dar a pensar…
2.
«Aquilo que a época religiosamente agitada do séc. XVII deixou à sua herdeira utilitarista foi sobretudo uma boa consciência – podemos dizer, tranquilamente, uma consciência farisaica – no que toca à aquisição de capital, desde que fosse adquirido legalmente. Qualquer resíduo do Deo placere vix potest tinha desaparecido. Tinha-se formado um ethos profissional especificamente burguês. Com a consciência de estar em estado de graça e com a bênção de Deus, o empresário burguês, no caso de se manter nos limites da correcção formal, de a sua acção ética não revelar manchas e de o seu uso da riqueza não ser inconveniente, podia (e era obrigado a) prosseguir os seus interesses económicos. O poder do ascetismo religioso fornecia-lhe, além disso, trabalhadores sóbrios, conscienciosos e invulgarmente aplicados que acreditavam firmemente ser o trabalho um fim designado por Deus. E dava-lhe ainda a certeza apaziguadora de que a distribuição desigual dos bens deste mundo era obra da divina Providência e que tanto essa distribuição como a atribuição da graça divina perseguia fins desconhecidos dos homens. Calvino já dissera, frequentemente, que o “povo”, isto é, a massa dos trabalhadores e artesãos, só na pobreza continuava obediente a Deus. Os holandeses (Pieter de la Court e outros) “secularizaram” esta ideia dizendo que a massa humana só trabalha se a necessidade a obrigar a isso, e esta formulação de um dos leitmotivs da economia capitalista levou depois à teoria da “produtividade” dos salários baixos. Também neste caso, a ideia utilitarista tomou o lugar da raiz religiosa (…).
(…)
(…) o trabalho honrado, mesmo mal pago, para aqueles a quem a vida não deu outra possibilidade, é uma coisa do profundo agrado de Deus. Neste aspecto, a ascese protestante não trouxe qualquer inovação. Mas não somente levou esta norma às últimas consequências, como criou a motivação psicológica que lhe conferia operacionalidade ao considerar que o trabalho profissional enquanto vocação [Beruf] constitui o meio mais adequado e, por vezes, o único, para obter a certeza da graça divina. Por outro lado, legalizou a exploração desta disposição para o trabalho, ao declarar o enriquecimento do empresário uma “profissão” vocacionada. A educação da igreja inculcava com especial intensidade nas classes desfavorecidas a ideia de que a salvação se obtinha exclusivamente pelo cumprimento do trabalho profissional e pela ascese rigorosa. Este facto desenvolveu a “produtividade” do trabalho no sentido capitalista da palavra. Tratar o trabalho como “vocação capitalista” tornou-se tão corrente para o trabalhador moderno como se tornou corrente para o empresário encarar dessa forma o enriquecimento.»
Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, trad. port. Ana Falcão Bastos e Luís Leitão (Lisboa: Presença/Ad Astra et Ultra S.A., 2010) 194-6.
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