Um governo serve para gerir o bem público. Nesse sentido, deve ser formado por pessoas capazes de o fazer bem. Nesta ordem de ideias não é logicamente necessário retirar a consequência de que tal governo tenha de ser democrático. Afinal, um ditador benevolente e competente servia perfeitamente este desígnio – governaria bem e ainda com a vantagem de deixar mais tempo livre aos cidadãos para conduzirem as suas próprias vidas sem preocupações políticas. Além disso, quando os cidadãos não são suficientemente capazes de tomar decisões para escolher os seus representantes, alguém terá de assumir essa nobre função por eles.
É nestes termos que mais ou menos todos os ditadores, como Hosni Mubarak e tantos outros, a nível internacional, nacional ou local, pretendem justificar o seu poder intocável e perpétuo. Afinal, é muito comum um qualquer coisa como “tudo farei, mas para vos salvar!” ou “seria o caos se deixasse o governo”. Há por esse mundo fora muitas democracias suspensas por oportunismos que servem “castas”; nenhuma por razões atendíveis, certamente.
Mas será esta justificação da ditadura aceitável? Não. Peca, antes de mais, por pressupor erradamente que o ditador seria incorruptivelmente benevolente, interessado apenas no bem público e não nos seus interesses ou dos seus. Além disso, pressupõe que há indivíduos sumamente competentes, perfeitamente capazes de exercer, sem mácula, as funções governativas. Mas o que é facto é que todo o ser humano é falível – ser humano e não um autómato é, justamente, ser falível. E, assim, não existe tal ditador benevolente e perfeitamente competente. Logo, a ditadura não pode ser a melhor forma de governo.
Aliado a esta falsa infalibilidade de alguns divinos eleitos, os defensores do sistema ditaturial erram, embora em graus variáveis, quando pressupõem que os cidadãos não estão preparados para assumir autonomamente as decisões de escolha dos seus representantes. Afinal, isso é talvez pressupor demasiado. Se pode ser verdade nalguns casos, que é certamente, não é verdade para todos e, em muitas sociedades, até pode ser uma interessada generalização precipitada.
De qualquer modo, sendo o ser humano falível, nada melhor do que arquitectar um sistema de governo capaz de lidar com essa falibilidade. É o caso da democracia. Se por acaso se erra na escolha dos líderes, há sempre a possibilidade de escolher outros. Para além de um conjunto de mecanismos que se desenvolveram ao longo da história, como a separação de poderes e o escrutínio público através de uma imprensa livre, tornarem o sistema democrático bastante bem fortalecido contra uma falibilidade humana nefasta.
Claro que a democracia também tem os seus defeitos. Mas, como dizia o velho Churchill, não deixa de ser «the worst form of government except from all those other forms that have been tried from time to time.» Apenas quem se ilude ainda com a possibilidade de existência do ser humano perfeito é que não está em posição de compreender este raciocínio claro: por muito benévolos e competentes que sejamos, não estamos imunes ao erro; sendo assim, há que permitir que, da sã e aberta concorrência aos lugares da governação, surjam os mais bem posicionados para os ocupar; logo, só um sistema de eleição democrática, plural e livre de representantes dos cidadãos pode atenuar esta falibilidade humana. Tanto quanto sabemos hoje, só a democracia preenche estes requisitos.
Pena é que os ditadores, com excepções desconhecidas, não se apercebam disto senão tarde demais, quase sempre depois de derramado muito sangue e com perdas sacrificiais altamente despropositadas e absurdamente injustas.
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