terça-feira, 27 de novembro de 2007

Privacidade na internet

Um recente estudo revela que os jovens ingleses não gostam da ideia dos seus dados pessoais, que disponibilizam na rede, virem a ser acedidos por universidades ou futuras empresas empregadoras.
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O estudo revela dados empíricos que verificam aquilo que, quem tem umas luzes de Psicologia humana e conhece e contacta diariamente com jovens, já suponha, ainda que de forma intuitiva ou com base em poucos dados. De facto, muitos jovens adolescentes, em busca da sua identidade e numa grande abertura ao outro que lhes é própria, revelam, despudoradamente e, muitas vezes, sem qualquer cuidado, os seus dados pessoais, a sua vida privada, quando não mesmo íntima, expondo-se assim em demasia à voracidade de alguns outros e a situações embaraçosas, diante das quais estão muitas vezes sozinhos para as enfrentar e resolver.
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Numa era de proliferação do liberalismo como forma de organizar os estados, mas também a sociedade civil e a vida individual, há ainda muito a fazer na educação para a liberdade e a individualidade, designadamente num mundo em rede. (Mais uma tarefa para a escola!) Ser verdadeiramente livre implica salvaguardar o nosso último reduto de invasões estranhas, para que possamos estar mais preparados -- fortalecidos e seguros em nós mesmos -- para o verdadeiro e são contacto partilhado com o outro.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A vida não é um jogo!

A sociedade de livre iniciativa e consumo é uma sociedade onde impera a liberdade como valor fundamental, que organiza essa mesma sociedade e a ordena do ponto de vista da justiça. Mas a liberdade justa é uma liberdade igual para todos, em que a liberdade deve naturalmente ser limitada, embora apenas pela própria liberdade!

Os jogos electrónicos, a par de outros produtos para jovens, são cada vez mais atraentes. A finalidade da maioria não é ajudar o jovem a crescer, mas é sim vender a maior quantidade possível de unidades. Isso, à partida, não encerra qualquer mal: aumentando as vendas, aumenta o emprego; aumentando o emprego, diminui a precaridade económica e social. No entanto, não parece haver dúvidas que as crianças e os jovens adolescentes devem ser preservados nas suas especificidades desenvolvimentais (conhecimento científico e tratados internacionais já bastam!) e não tratados pura e simplesmente como alvos a manipular, no sentido de comprarem os jogos.

A mais recente polémica (veja-se mais detalhes aqui) -- embora, mesmo apesar do conflito de valores, não se veja muito bem qual a dúvida -- é com um jogo de telemóvel para raparigas, em que a protagonista se apresenta com um role de vícios (ou invirtudes, como se queira!), como por exemplo consumir drogas, enganar professores, práticas sexuais estranhas... com o intuito de ganhar popularidade! Eis a imagem estereotipada de mulher profissional, social e sexualmente popular, a continuar a fazer vítimas junto das jovens a aguardar por modelos a imitar!
O incrível desta triste história, é que a empresa responsável pelo belo produto travestiu o engodo comercial -- altamente atractivo para as jovens presas fáceis da sua naturalmente insegura e curiosa adolescência --, com uma justificação fantástica: o jogo deve causar uma reflexão por parte das jovens, já que todas as acções desviantes praticadas pela protagonista são para serem compreendidas de forma irónica!! Fantástica (galardoável), a ousadia pedagógica!! Mas, lamentável, a falácia, e triste, a ignorância!

No entanto, quiçá não será esta uma fatal prenda no sapato desapertado de tantas pobres e abandonadas jovens por este melhor mundo fora! A vida não é, decididamente, um jogo.

sábado, 24 de novembro de 2007

Há cinco anos morria John Rawls

John Rawls (21 Fevereiro 1921 - 24 Novembro 2002) revitalizou a filosofia política, que em meados do séc. XX vivia praticamente enclausurada na análise linguística e no cálculo utilitarista, duas tentativas de pensar o político fora do âmbito construtivo da metafísica. Não contente em limitar-se a desconstruir os nossos impulsos em colocar questões metafísicas – apesar de inicialmente muito influenciado por Wittgenstein e pela filosofia analítica –, Rawls dedica-se, desde a sua dissertação doutoral, a uma filosofia política construtiva.

Os seus esforços ao longo de duas décadas, em que publicou vários artigos, culminaram na sua obra seminal A Theory of Justice (1971). Nessa obra, Rawls reúne e acrescenta argumentos para defender a sua teoria da “justiça como equidade”. Ampliando a ideia de contrato social, proveniente de Locke, Rousseau e, sobretudo, sob a influência de Kant, defende que uma concepção legítima de justiça surge de uma situação hipotética – a que chamou “posição original” – em que as partes escolheriam, numa situação de igualdade, de entre uma lista de princípios de justiça, aqueles que regulariam a estrutura básica da sociedade. Para assegurar uma situação de igualdade de escolha, as partes estão sujeitas a um “véu de ignorância”, que as privaria de saberem quais os seus interesses particulares, a sua posição na sociedade, tornando, assim, a sua escolha imparcial. Qualquer pessoa nestas circunstâncias de escolha, argumenta Rawls, escolheria os dois princípios de justiça propostos por Rawls: cada pessoa deve ter direito à maior liberdade possível, desde que seja compatível com igual liberdade para os outros (princípio da liberdade); e as desigualdades sociais e económicas só são justificadas quando produzem maior benefício para os menos favorecidos (princípio da diferença) e quando estão ligadas a cargos e posições que estão abertos a todos em igualdade de oportunidades (princípio da igualdade).

O liberalismo de Rawls é claro quando defende que o primeiro princípio (da liberdade) tem prioridade sobre o segundo: «a liberdade só pode ser restringida para bem da liberdade»(1). A crítica fundamental de Rawls contra o utilitarismo é justamente porque esta doutrina, então dominante, nega o caracter separado dos indivíduos e, portanto, é hostil à liberdade. Para Rawls o calculismo utilitarista não permite, como o permite a sua teoria da justiça como equidade, que os indivíduos tenham a oportunidade de formular e perseguir os seus próprios interesses e objectivos, sujeitos, naturalmente, à condição de reconhecerem igual liberdade para os outros.

Num artigo de 1985 (2), Rawls começou a desenvolver a ideia de que uma análise da justiça de caracter liberal, como a que defendia, seria melhor compreendida se fosse concebida enquanto uma teoria política e não metafísica. Em TJ, a “justiça como equidade” era apresentada como uma doutrina abrangente (não só política, mas filosófica, ética, tratando-se de uma concepção de como as pessoas deveriam orientar a sua vida moral). Mas em Political Liberalism(3) Rawls argumenta que uma concepção política de justiça se baseia em valores políticos e não deve ser apresentada como parte de uma doutrina filosófica, religiosa ou moral abrangente. Nas sociedades actuais, organizadas em torno de instituições livres, encontra-se naturalmente uma pluralidade de doutrinas distintas e incompatíveis entre si, muitas delas não razoáveis mesmo. A proposta rawlsiana de um liberalismo político reconhece este “facto do pluralismo razoável” e responde-lhe mostrando de que maneira uma concepção política (o liberalismo político) se ajusta a doutrinas abrangentes diversas e até mesmo conflituantes, embora dentro do limite da razoabilidade: o liberalismo político pode proporcionar um “consenso de sobreposição” que permite a coabitação dessas várias concepções de mundo, filosóficas, religiosas ou morais. Ao desenvolver a sua ideia de liberalismo político, Rawls reformulou a sua exposição e defesa da teoria da justiça como equidade, vindo a apresentá-la como a forma mais razoável de liberalismo político(4).

Questões deixadas de fora em TJ, como aquelas acerca da justiça internacional, justiça familiar, entre outras – “problemas de extenção”, como lhe chamou – ocuparam Rawls no final da sua carreira, reflexões que vieram a ser reunidas em The Law of Peoples, obra publicada em 1999 (5), onde defende que o liberalismo político, tal como o concebe, pode ser alargado à esfera internacional, e onde propõe princípios de conduta internacional que podem ser aceites tanto por povos liberais como por povos não liberais.

Em suma, o esforço de Rawls consistiu nada mais nada menos do que em tentar resolver um dos mais árduos problemas da filosofia política – a conciliação entre os valores, dificilmente conciliáveis, da igualdade e da liberdade. Na teoria de Rawls, a igualdade é assegurada através da protecção dos direitos e liberdades apropriadas através da estrutura básica da sociedade; e a liberdade é preservada permitindo aos indivíduos que persigam as suas razoáveis concepções do bem, quaisquer que elas sejam, dentro dos limites constitucionais.

A influência da sua obra foi enorme, suscitando fortes reacções da parte de outros filósofos. Dentro da própria tradição liberal, irromperam críticas, como a do libertário Robert Nozick, muito crítico do princípio da diferença, considerando a justiça redistributiva um “roubo” face à livre actividade das pessoas que trabalham e daí retiram justamente os seus rendimentos. Um outro conjunto de fortes objecções provêm de um conjunto de filósofos geralmente designados de comunitaristas, que põem em causa a concepção rawlsiana (e o liberalismo em geral), por assentar numa concepção do indivíduo (o «eu desimpedido», na expressão de Michael Sandel) e da relação entre indivíduos, que é empiricamente falsa e normativamente insatisfatória, já que, segundo aquele grupo de filósofos, o liberalismo não tem em conta que a concepção que as pessoas têm de si mesmas é uma consequência da sua localização numa comunidade.

Para além da sua influência se ter verificado ao nível académico também na Economia, na Ciência Política, na Sociologia e no Direito, ela transgrediu os muros da vida académica: Rawls foi citado, nos últimos anos, em mais de 60 sentenças judiciais nos E.U.A.; os manifestantes na Praça de Tiananmen brandiram cópias de TJ diante das câmaras de televisão; escritores indianos citaram-no incessantemente nos seus protestos contra os perigos do sectarismo religioso...
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(Rawls para principiantes: aqui ou aqui)
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(1) John Rawls, A Theory of Justice (Oxford: Oxford University Press, 1973) 302. Doravante referida com as siglas TJ.
(2) John Rawls, “Justice as fairness: political not metaphysical”, Philosophy and Public Affairs 14 (1985) 223-252.
(3) John Rawls, Political Liberalism (New York: Columbia Univ. Press, 1993).
(4) John Rawls, Justice as Fairness – A Restatement (Harvard: Harvard University Press, 2002).
(5) John Rawls, The Law of Peoples (Harvard: Harvard University Press, 1999).

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Última aula de Figueiredo Dias, o "não convocado"!

O Professor Doutor Figueiredo Dias deu ontem a sua última aula, através, como é tradição, do seu discípulo mais velho, Prof. Doutor Costa Andrade. Este, para além de ter criticado, à margem da aula, o facto, completamente incompreensível, de aquele arauto do Direito Penal em Portugal e no mundo, não ter sido "convocado" para a nova revisão do Código Penal e do Código do Processo Penal, salientou uma das suas preferidas sentenças do pensador penalista português, que mostram o seu liberalismo equilibrado e constituem uma boa síntese da axiologia fundamental das sociedades liberais democráticas contemporâneas:
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«Do ponto de vista do Direito Penal, cada um tem o inalienável direito de ir para o inferno à sua própria maneira, contanto que no caminho não mate nem roube ninguém.»

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Novo e-Público

O Público renovou a sua edição on line, com alterações gráficas e inclusão de vídeos. A crise da edição impressa, sobretudo da imprensa diária, conduz as empresas dos media, um pouco por todo o mundo, a investir nas edições digitais e, assim, a reinventarem, quase constantemente, o jornalismo. Os leitores ficam a ganhar? Não ficam a perder, uma vez que o acesso à informação é facilitado e as mudanças gráficas sazonais constituem mais um atractivo, embora de interesse secundário. Os conteúdos continuam a ser o critério! Quanto à edição em papel... não está tão perto o seu fim como se possa pensar! Mas, quando acontecer, não será uma tragédia.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

No Dia Internacional da Filosofia, pensar o ensino da Filosofia

Comemora-se hoje o Dia Internacional da Filosofia, por proposta da UNESCO, que tem vindo a fazer um esforço persuasivo de divulgação da importância da aprendizagem da filosofia (Veja-se, a propósito, uma boa síntese num livro recente).
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A filosofia faz-se colocando questões tão inquietantes quão importantes para o ser humano, procurando teorias para tentar responder-lhes e arquitectando argumentos para sustentar essas teorias e ou para refutar teorias adversas. Este empreendimento começou, no Ocidente, há cerca de 2.500 anos, na Grécia antiga, e desde então tem sido estruturante na nossa civilização. Os gregos inauguraram apenas a atitude inquiridora e crítica, que, por constituir talvez a essência última do conhecimento, perdurará tanto quanto a espécie humana. Os gregos, porque inventaram este tipo de saber, inventaram também a escola – tempo livre concedido aos jovens, para apreenderem as conquistas da cultura no desbravar do conhecimento.

O ensino da filosofia tem, em Portugal, uma longa tradição – somos dos países em que há mais tempo se ensina filosofia no ensino secundário. A sua importância é visível em todos os sistemas de ensino modernos, independentemente da sua concretização curricular. Nos países de tradição e influência anglo-saxónicas, por exemplo, a filosofia não faz parte do desenho curricular do ensino secundário, mas as suas principais áreas são leccionadas nos primeiros anos dos cursos universitários. E a sua importância não diminuiu, como se poderia ser levado a pensar, numa época avassaladoramente dominada pela ciência e pela tecnologia. A filosofia é, pelo contrário, uma área de investigação presente em todas as grandes universidades do mundo, incluindo as universidades tecnológicas. A título exemplificativo, veja-se o caso do M.I.T., talvez a maior universidade tecnológica do mundo, onde se faz “investigação de ponta”, por exemplo na área transdisciplinar que é a Inteligência Artificial: o M.I.T. tem um departamento de Filosofia da Mente! O M.I.T. é, note-se, uma instituição privada, que recebe milhões de dólares anuais de donativos – investir no conhecimento é um acto uinteligente; investir no conhecimento é também investir na filosofia!

Ensinar filosofia no ensino secundário, para além de desvantagens, tem, entre outras, a vantagem de encontrar os jovens num estado de desenvolvimento intelectual e emocional propício ao pensamento crítico. E aprender filosofia no ensino secundário permite: 1. adquirir conhecimentos fundamentais para compreender, não só ou nem tanto as raízes culturais onde a nossa civilização está ancorada, mas sobretudo para compreender a teia problematológica da nossa contemporaneidade; bem como permite 2. adquirir competências de pensamento crítico, argumentativo, dialógico e inquiridor, competências sem as quais não é possível a inevitável cidadania, mas em que também a sua ausência dificultaria em muito o verdadeiro desenvolvimento pessoal, social, cultural e até económico (!), que é especificamente humano.

A falta de coerência política no seio do M.E. em Portugal, nas últimas décadas e que tem vindo a agravar nos últimos anos, tem conduzido o ensino da filosofia numa inaudita e confusa “trapalhada”: precipitações nas (boas) remodelações programáticas; introdução de um exame no final do ensino secundário, com valor de prova específica de acesso ao ensino superior; retirada desse mesmo exame no ano seguinte; proibição das universidades exigirem para alguns cursos apenas o exame de filosofia como prova específica de acesso; proibição reiterada no ano seguinte (o corrente), em que o exame de filosofia deixará de constituir prova específica para qualquer curso…É, no mínimo, ridículo pensar que uma universidade que admite estudantes para um curso de filosofia, não pode testar os conhecimentos e competências filosóficas que os candidatos adquiriram no ensino secundário!

A avaliação externa é, sabe-se hoje, um instrumento pedagógico indispensável para a regulação do sistema de ensino, permitindo, de facto, um maior aprofundamento das temáticas leccionadas e uma mais eficaz aprendizagem de conhecimentos e competências.

O M.E. ainda não conseguiu explicar porque razão retirou a obrigatoriedade do exame de filosofia no final do 11.º ano do ensino secundário, nem tão pouco por que razão deixou de ser prova específica de acesso. Como não há razões científico-pedagógicas, as que sobram são razões empobrecedoramente políticas – continuar na senda do populismo demagógico, facilitando ainda mais a conclusão (mais virtual do que real) do ensino secundário e o acesso (inquinado) ao ensino superior. O próximo passo será acabar com o ensino da filosofia no ensino secundário? Estará em preparação, contra todas as indicações, inclusive da UNESCO, mais um crime contra a filosofia, desta feita privando os jovens, futuros cidadãos, do acesso à sua aprendizagem?

Trata-se da política virtual do facilitismo castrador no seu melhor, cujos protagonistas esquecem irresponsavelmente que não é líquido que um governo democrático deva fazer aquilo que as pessoas querem, mas talvez, pelo menos em áreas tão fundamentais, como é a educação, deva fazer aquilo que é bom para as pessoas e que elas acabariam por desejar, caso pudessem empreender uma reflexão aprofundada e objectiva sobre os seus verdadeiros interesses! (Como diria Bertrand Russel, caso tivessem “umas tintas de filosofia”!)

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O estatuto da aula!

O governo, para tentar resolver o problema do absentismo excessivo praticado por alunos, com a passiva, por vezes impotente (!), conivência de encarregados de educação, no que toca a faltar às aulas, propõe que o aluno faltoso, para castigo, faça um exame às disciplinas em questão. Depois de incluir algumas sugestões da oposição – embora não todas, mas que permitiram, ainda assim, melhorá-lo –, o diploma foi aprovado.

Ora, o que está em questão com este novo estatuto do aluno é o estatuto… da aula! O que seria necessário saber era qual a verdadeira importância que a tutela – através das normas que regem a penalização para quem não as frequenta – concede à aula, enquanto momento de aprendizagem. Ou seja, o que vale verdadeiramente – para efeitos de aprendizagem – o espaço e tempo em que o aluno empreende um conjunto de actividades orientadas e avaliadas por um professor, no intuito de desenvolver competências e apreender conhecimentos? É possível aprender sem frequentar as aulas, aulas orientadas por um professor e assistidas por um grupo de outras crianças e jovens, aulas programadas como as necessárias para tal fim? Resolverá o “exame-castigo” o problema de faltar às aulas, ou seja, o problema de não ter aprendido? Ou “resolverá” apenas o “problema do insucesso estatístico”, aumentando o número de alunos que passará a ter sucesso, não necessariamente nas suas aprendizagens, mas na transição para o ano lectivo seguinte?

A solução – já que há, evidentemente, um problema (a excessiva falta de assiduidade) – foi penalizar o aluno com um exame. Já por si, a penalização, não é feliz: um exame não é um castigo (e se não é tomado como tal, pelo novo estatuto, é isso que, no fundo, vai parecer e ser); um exame é um muito importante (e como tal deveria ser, cuidadosamente, tratado!) momento de testagem de conhecimentos e competências adquiridas… nas aulas!

A solução deveria enfrentar o problema de modo mais eficaz. Talvez fosse bom – sobretudo para o aluno excessivamente faltoso e, por isso, cada vez mais longe da aprendizagem de facto! – ponderar seriamente a hipótese da penalização se revestir de um carácter pecuniário, que abrangesse diminuições de subsídios atribuídos aos pais, pois é, muitas vezes, a ausência da (boa e necessária) autoridade destes que permite o absentismo.

As razões são claras e parecem fundamentar, de modo sólido, esta hipótese de solução: se a sociedade deve contribuir, por via da cobrança de impostos pelo Estado, para auxiliar as famílias a prestar cuidados às suas crianças e jovens (por exemplo, através do abono de família), então as famílias também deveriam ter igual dever, em contrapartida, de “auxiliar” mais eficaz e responsavelmente a sociedade no sentido de ensinar e formar, o melhor possível, as crianças e jovens, futuros cidadãos. Isto porque, de qualquer modo, será sempre visado o próprio indivíduo – a criança, o jovem e futuro adulto –, que seria sempre tratado como um fim em si mesmo ao ser dada real importância vital à sua educação. Isto, partindo do princípio da importância transcendente da educação!

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Isaiah Berlin (1909-1997), pensador da liberdade

Há dez anos morria Isaiah Berlin, nascido em 6 Junho de 1909 na Rússia soviética e que viveu em Inglaterra desde os 11 anos, foi um filósofo e eminente historiador das ideias, escritor e orador de uma magistral e contagiante eloquência, clarificador de algumas das mais importantes e centrais questões da história das ideias do Ocidente. Numa era de fundamentalismos generalizados, em vários âmbitos e graus (e num tempo em que, intramuros, por exemplo, a polémica do “Museu do Estado Novo” chega ao Parlamento), talvez não fosse má ideia dar uma vista de olhos ao pluralismo tolerante de Berlin!

O interesse de Berlin pela Filosofia começou, no início da década de 1930, sob a influência da filosofia analítica dos dois mais influentes filósofos anglo-saxónicos de então – G. E. Moore e Bertrand Russell. Nesse sentido, Berlin interessou-se pela questão da natureza do significado dos enunciados linguísticos e tomou parte da discussão (a chamada “Filosofia de Oxford” terá começado em discussões nocturnas em sua casa), mas permaneceu sempre um pensador mais «herético do que amigável», defendo ao longo de toda a sua vida intelectual, que, embora a experiência empírica seja a única coisa que a linguagem pode expressar com significado (não há outra realidade), a «verificabilidade não é o único ou mesmo o mais plausível, critério de conhecimento ou crenças ou hipóteses»(1).

No entanto, depois de ter servido na 2.ª Guerra Mundial, Berlin, de volta a Oxford, interessou-se sobretudo por duas questões centrais: o monismo (tese central da filosofia ocidental, desde Platão aos nossos dias) e o significado e aplicação da noção de liberdade.

Segundo a maioria dos filósofos ocidentais, depois de descoberto o método adequado, a verdade mais fundamental acerca da vida social, política, moral e pessoal poderia ser também descoberta e, assim, resolvidos todos os problemas da humanidade. A completar esta tese central, os filósofos tiveram tendência para advogar esta outra: para todas as verdadeiras questões deve haver apenas e só uma única resposta verdadeira, sendo todas as outras respostas falsas.

O cepticismo de Berlin relativamente a esta crença central da filosofia ocidental, levou-o a percorrer os pensamentos do filósofo italiano do séc. XVIII, Giambattista Vico, interessado em pensar a historicidade e que terá sido, segundo Berlin, o primeiro a conceber a ideia de culturas; do alemão J. G. Herder, que defendia que as diferentes culturas davam respostas diferentes para as suas questões centrais, não havendo, pois, respostas verdadeiras, válidas de modo universal para todas as culturas; até à ideia, desenvolvida pelo Romantismo do séc. XIX, de que «os ideais não são verdades objectivas escritas no céu e que precisam ser compreendidas, copiadas, praticadas pelo homem; mas antes são criadas pelo homem. Os valores não são encontrados, mas feitos; não descobertos, mas gerados».(2)

É claro que Berlin relacionou esta interpretação estética da moralidade (a criação é tudo!) com uma série de movimentos que assolaram a cultura ocidental e que se erigiram sob a égide do “eu faço os meus próprios valores”, sendo este “eu”, muitas vezes, uma nação, uma igreja, uma raça, um partido, uma classe, em que o indivíduo não é senão uma pedra do edifício, um fragmento vivo do organismo. Assim aconteceu com o nacionalismo germânico – “eu faço isto, não porque é bom ou certo ou porque goste, mas porque sou alemão e esta é a maneira alemã de viver” – , ou com o moderno existencialismo – “eu faço isto, porque comprometi-me a mim mesmo com esta forma de existência, criada por mim e não por qualquer ordem objectiva ou regra universal a que devo obedecer”.

Embora Berlin nunca tenha aceite a ideia destes “super-egos” – permaneceu sempre um empirista, nunca um idealista –, reconheceu a sua importância para a acção e o pensamento modernos, conduzindo-o à defesa de uma das suas ideias centrais – o pluralismo: há uma pluralidade de ideais, tal como há uma pluralidade de culturas e temperamentos.

Berlin defendeu o pluralismo, mas não o relativismo, do qual se afastou propondo, não que cada um tenha os seus valores e que estes sejam absolutamente inconciliáveis com os dos outros (relativismo), mas que, apesar da pluralidade de valores, diferentes entre si, não há um número infinito deles, quer dizer, o número de valores que se podem perseguir sem perder as características ou o perfil humano é finito. E «se um homem persegue um destes valores, eu, que não o faço, sou capaz de entender porque razão ele o faz ou como seria, nas suas circunstâncias, para mim ser induzido a persegui-lo. Daí a possibilidade do entendimento humano.»(3) Em suma, e contra o relativismo, Berlin acredita que esta multiplicidade de valores, que se podem perseguir sem deixarmos de ser humanos, não são criações arbitrárias do ser humano, mas são objectivos, ou seja, a sua natureza, a sua persecução faz parte daquilo que é ser humano.

Assim, se o pluralismo e o respeito entre sistemas de valores não necessariamente hostis entre si são válidos, então daí segue-se, consequentemente, a tolerância e o liberalismo, coisa que não decorreria nem do monismo (apenas um conjunto de valores é verdadeiro, todos os outros são falsos), nem do relativismo (os meus valores são meus, os teus são teus, e se houver conflito, paciência, nenhum de nós pode defender que está certo!). «O meu pluralismo político – confessa Berlin – é um produto das leituras de Vico e Herder e de compreender as raízes do Romantismo, que, na sua violenta e patológica forma, foi demasiado longe para ser humanamente tolerado.»(4)

Mas um dos temas com mais impacte na filosofia política contemporânea foi a distinção entre liberdade negativa e liberdade positiva. No primeiro sentido, liberdade é a ausência de obstáculos que bloqueiam a acção humana, é «a área na qual um homem pode agir sem ser obstruído por outros»(5). Para além dos obstáculos criados pelo mundo exterior ou pelas leis biológicas, fisiológicas e psicológicas que governam o ser humano, o importante para Berlin é o facto de existir uma grande falta de liberdade política, em que os obstáculos são feitos pelo próprio homem.

A crítica mais comum a esta noção de liberdade negativa, muito cara a Berlin e um certo liberalismo, é a de que apenas nos devemos libertar dos obstáculos que nos prendem, para ficarmos livres para empreendermos uma acção determinada. Berlin defende-se argumentando que a falta de liberdade, neste sentido básico, se refere ao homem preso e o que o homem quer nesta circunstância é quebrar as suas correntes, evadir-se da sua cela, independentemente de ter em mente uma acção determinada para empreender assim que se encontrar em liberdade. Trata-se, pois, da libertação (“livre de...”) de regras da sociedade ou das suas instituições, de uma qualquer força moral ou física excessivas ou de qualquer coisa que impeça as possibilidades de acção, que, de outro modo, estariam disponíveis.

No outro sentido, a liberdade é entendida como “liberdade para”. Neste sentido, trata-se de perguntar, já que há obstáculos à minha acção erigidos pelo próprio homem, quem determina a acção humana – se pais, professores, padres, a disciplina de um sistema legal, a ordem capitalista, um dono de escravos, um governo. Trata-se de pensar a liberdade no sentido de autonomia e, neste sentido, um indivíduo, apesar de não estar proibido de aceder, por exemplo, a uma boa universidade privada, ele pode não ter dinheiro suficiente para o fazer e, assim, não detém verdadeiramente a possibilidade de o fazer, o poder de agir.

Apesar de acérrimo defensor da “liberdade negativa”, Berlin afirma que não são concepções necessariamente conflituais: ambas são fins últimos a alcançar; ambas são necessariamente limitadas; e ambos os conceitos podem ser pervertidos ao longo da história! Por exemplo, a liberdade negativa pode ser pervertidamente interpretada enquanto economia de laissez-faire, em que, em nome da liberdade, patrões possam, por exemplo, explorar mão-de-obra infantil. Mas foi, segundo Berlin, a noção de liberdade positiva, aquela que foi alvo das maiores perversões da história: com base no pressuposto de que o indivíduo é demasiado ignorante, confuso e determinado pelas suas emoções, deveria obedecer a alguém mais inteligente e racional, que sabe o que é melhor, não só para si próprio, mas também para os outros. Trata-se de uma perspectiva metafísica que perpassa todo o pensamento ocidental, desde o “filósofo-rei” platónico à omnipresente orientação do partido proposta por Marx, e que se enterra no monismo da verdade única.

Daqui ao determinismo histórico é um passo – crença, bastante aceite pelos filósofos ao longo dos séculos, segundo a qual, uma vez que na natureza todos os acontecimentos têm uma causa que pode ser conhecida, também o homem estaria sob o domínio desta ordem determinada, que possibilitaria assim conhecer o que o homem necessariamente é e qual deve ser o seu caminho. Ora, Berlin refuta esta doutrina, mostrando como a moralidade pressupõe responsabilidade e esta, por sua vez, é apenas verdadeiramente possível se houver livre escolha.

É por isso que a perseguição de um ideal é perigoso. A ideia de um mundo perfeito, de uma sociedade perfeita, implica uma harmonia na realização de todos os grandes valores humanos. Mas isso não é possível, pois «alguns valores últimos são compatíveis entre si e outros não são.»(6) Por exemplo, a liberdade perfeita (como deveria ser num mundo perfeito) não é compatível com a igualdade perfeita, tal como conhecimento e felicidade talvez possam não ser. Ora, todos eles são valores humanos últimos, mas como/quando são incompatíveis, não podem ser todos alcançados e, portanto, é preciso fazerem-se escolhas, pensar nos melhores arranjos de valores possíveis.

Assim, «todas as justificações para os ovos partidos na busca da última omelete, todas as brutalidades, sacrifícios, lavagens cerebrais, todas essas revoluções, tudo aquilo que fez deste século [XX] talvez o mais horrível desde outros tempos, em qualquer proporção no Ocidente – tudo isto foi para nada, pois o universo perfeito não é apenas inatingível como é inconcebível, e tudo o que for feito para conduzir a isto está fundado numa enorme falácia intelectual.»(7)
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(1) Isaiah Berlin, “My intellectual path” in Isaiah Berlin, The First and the Last (New York: New York Review of Books, 1999), 29. (A tradução dos excertos citados dos textos de Berlin foi feita, a partir do original, com pouco rigor técnico, pelo que pode naturalmente enfermar de algumas imprecisões.)
(2) Idem o.c. 45-6.
(3) Idem o.c. 51.
(4) Idem o.c. 53.
(5) Idem, “Two concepts of liberty” in Idem, Four Essays on Liberty (Oxford: Oxford University Press, 1969) 122.
(6) Idem, “My intellectual path”, 75.
(7) Idem o.c. 78.