quinta-feira, 19 de maio de 2011

Dar a pensar...

[Sobre verdade, objectividade e subjectividade]

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«No que respeita a questões simples como a inclinação das ruas, ninguém considera que o Ega e o Pedro discordam. É obvio que a discordância é meramente aparente. Mas quando o Ega afirma que Bach é melhor que Pérotin e o Pedro o nega veementemente, o que dizer? É nestes casos que é tentador dizer que é meramente uma questão de gosto pessoal, e que gostos não se discutem. Mas, se virmos bem, passamos a vida a discutir precisamente os gostos – nas críticas literárias, nas histórias da arte, e mesmo entre amigos. Se levássemos a sério a ideia de que os gostos não se discutem, não o faríamos.

Pense-se como seria estranho o Eusebiozinho afirmar que os traços que acabou de fazer numa parede eram bem melhores, como arte, do que as melhores obras de Amadeo Modigliani. Quando o Ega começasse a pôr isso em causa, o Eusebiozinho acabaria a discussão dizendo que os gostos não se discutem. O que diríamos disto? Diríamos que o Eusebiozinho quer apenas manter a ilusão de que é um artista superlativo, quando não o é de facto. Mas se os gostos são apenas uma questão subjectiva, ele tem razão: é um artista superlativo para ele, mesmo que o não seja para os outros. E acabou a conversa.

Geralmente, não consideramos que acabou a conversa porque consideramos que podemos errar ao fazer juízos estéticos, políticos e outros. Mas se levássemos sério a ideia de que tais juízos são subjectivos, não conseguiríamos errar. Pense-se na tolice que seria alguém dizer “Ele gosta muito da salada de alface, mas está enganado”. Nos casos em que realmente estamos perante gostos subjectivos, não podemos estar enganados. Nos casos em que podemos estar enganados, não pode tratar-se de simples gostos subjectivos. Tem de ser algo mais.

Consideramos que uma obra de arte é boa quando cremos que tem propriedades que fazem um ser humano, com aproximadamente as mesmas capacidades cognitivas e sensoriais que nós temos, valorizá-la. Inversamente, quando vários seres humanos, nomeadamente os mais bem informados, consideram uma obra boa, é estranho que alguém discorde disso; se isso acontecer, consideramos que essa pessoa não viu bem ou não compreendeu correctamente aspectos importantes da obra. Não dizemos apenas que é uma questão de gosto. O consenso dos mais bem informados seres humanos da área é indício de que essa pessoa isolada está enganada.

Desidério Murcho, A Filosofia em Directo (Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011) 92-4.

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