quarta-feira, 2 de junho de 2010

Incompatibilidades

«A única razão para limitar a liberdade de alguém é a prevenção do dano que possa causar a outrem»
(John Stuart Mill)

Um dos pilares fundamentais das sociedades democráticas liberais é a liberdade do indivíduo. O estado existe para, através das suas leis e instituições (polícias, tribunais, hospitais, escolas…), promover a segurança, o bem-estar e permitir o desenvolvimento humano do indivíduo. O indivíduo é livre quando lhe é permitido agir de forma autónoma, quando pode fazer aquilo que deseja, aquilo que escolheu fazer, mesmo que os outros não concordem com tal escolha. Mas essa liberdade deve ser igual para todos. Por isso, a organização política do estado moderno democrático e liberal é, em geral, orientada pelo princípio do dano: a liberdade do indivíduo só deve ser limitada se e quando causar dano a outros indivíduos.

A cidade de Mirandela estremeceu com um caso polémico, que animou o país. Uma professora do 1.º ano do Ensino Básico, responsável por uma actividade extra-curricular, posou para a revista erótica “Playboy”. A revista esgotou. Ao que parece não tanto pela qualidade excepcional das fotografias, por muito bons exemplares que sejam da arte, mas porque pais e alunos identificaram imediatamente a professora, que exibia a sua beleza íntima e os seus dotes sedutores. Os pais não gostaram e direcção da escola também não. A Câmara Municipal suspendeu a actividade da professora e colocou-a noutro serviço.

A questão que se levanta é a seguinte: Será correcto dispensar uma professora pelo exercício de uma actividade realizada no âmbito da sua esfera privada? Terá a sua livre escolha causado dano a outros? Creio que sim.

A mulher que posou para a revista “Playboy” não era, por exemplo, uma funcionária administrativa de uma empresa de consultoria económica e financeira, nem uma empresária do ramo da publicidade, não era actriz ou modelo fotográfico… Exercia a função de professora numa escola pública. Tinha uma actividade pública, que interfere directamente com outras pessoas, neste caso com pessoas especiais – crianças.

Sejamos claros: o erotismo presente nas fotografias em causa está, mesmo que indirectamente, muito facilmente ligado à sexualidade humana. A sexualidade humana é algo de bom, com valor; mas, por isso, devemos cuidar bem dela. Quer dizer que devemos ter todos os cuidados que empregamos para as coisas que mais valorizamos. Porém, tanto quanto sabemos, através dos conhecimentos da Psicologia humana, a sexualidade é um comportamento complexo, que não se esgota no funcionamento do aparelho reprodutor e funcionamento glandular, mas envolve sentimentos e emoções fortes, profundas e de grande significado para o ser humano e, além disso, implica um desenvolvimento cerebral e uma maturidade próprios de um ser humano mais adulto. Tanto quanto sabemos, as crianças não detêm um desenvolvimento psicológico e emocional suficientemente adaptado a este tipo de comportamento tão intenso e psicológica e socialmente complexo. É por isso que a sensualidade, o erotismo e a sexualidade têm sido (quando o são!) inteligentemente vedados às crianças até uma certa idade.

Naturalmente que se pode falar com uma criança em idade escolar sobre certos aspectos da sexualidade humana. Têm, no entanto, que ser aspectos muito elementares e feito de modo muito específico e contextualizado, o que não inclui certamente qualquer tipo de exibicionismo. A professora em questão e aqueles que julguem que a sua acção não deve ser reprovada terão que mostrar que seria fácil e inofensivo para o seu desenvolvimento psicológico explicar àquelas crianças o significado da sua professora ter sedutoramente posado nua em fotografias vistas talvez por milhares de pessoas.

Além disso, sabemos, também recorrendo à Psicologia, que as crianças na idade escolar aprendem por observação e imitação de modelos. Os modelos começam por ser, sensivelmente até à adolescência, pais e professores. Estes agentes de socialização devem, pois, ter os devidos cuidados nas suas atitudes e comportamentos, pois serão imitados. Um professor é um técnico do ensino e da aprendizagem, o que significa que, mais do que os próprios pais, deve ter um conjunto de conhecimentos científicos e técnicos que o torne capaz de exercer a sua actividade de educador e professor de modo a influenciar o mais positivamente possível os seus alunos e a minimizar o mais possível qualquer previsível interferência negativa no seu desenvolvimento, que deve, portanto, ser o mais harmonioso, equilibrado e incontroverso que nos é dado saber ser possível.

Um professor deve, pois, ter conhecimentos seguros de psicologia adequados ao nível etário dos alunos que ensina. Como deve saber também que a sua vida privada pode facilmente interferir, graças à natureza da sua profissão, na sua vida pública.

Portanto, não é em defesa dogmática de um conjunto de valores, hábitos ou costumes supostamente absolutos ou intocáveis, que este comportamento não deve ser admissível. Não há nisto qualquer conservadorismo; há apenas incompatibilidades. Trata-se, pois, de defender uma sociedade de pessoas livres e iguais, organizada num estado verdadeiramente democrático e liberal: é para manter a maior liberdade possível para todos, que a liberdade de cada um tem, irremediavelmente, que ter limitações.

Este caso mostra, infelizmente, algumas lacunas preocupantes. Primeiro, mostra como a formação ética e política para a cidadania de pessoas que foram à escola, que têm pleno acesso à informação, que pretendem habitar uma sociedade moderna e viver em liberdade, não é suficiente para compreender as complexas exigências da verdadeira liberdade e igualdade, do pluralismo e da vida razoável com outros. Depois, mostra como alguma formação inicial de professores talvez não esteja isenta de lacunas graves ao nível dos conhecimentos científicos hoje disponíveis. Os licenciados (agora mestres!) em ensino devem saber, entre outras coisas, como se comporta uma criança, como se desenvolve, quais as suas características psicológicas gerais... Um bom professor é, antes de mais, alguém que sabe. Infelizmente, alguns professores, embora não todos, mostram, por algumas práticas, não saber. Depois, este tipo de casos fazem pensar na necessidade de uma associação profissional reguladora: uma Ordem dos Professores, organismo investido de conhecimentos da prática docente, capaz de delinear um código deontológico (deveres que, à partida, sabemos que um professor deve ter em conta no exercício das suas funções) e capaz de ajudar a decidir nestes casos mais polémicos.
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Publicado in Jornal Terra Quente, 1 de Junho 2010.

4 comentários:

MCF disse...

Então e os professores que fumam á porta da escola?

Ninguém faz nada em relação a isso?

Neste caso o princípio do dano ainda é maior, não sei como não há pais a reclamar e a chamar a televisão. :/

Miguel Portugal disse...

De facto, MCF, há um conjunto de pequenos actos (aparentemente insignificantes) protagonizados por professores que, provavelmente, deveriam ser corrigidos. Um deles é precisamente esse que referiste. Fumar à porta da escola é um espectáculo deprimente e pedagogicamente errado (pelo menos, as pessoas deveriam ter o bom senso de passear um pouco além da escola e voltar!).

É com base precisamente no princípio do dano que passou a ser proibido fumar em recintos fechados. Mas creio que seria muito mais ajustado à profissão docente e à relação pedagógica que se criassem áreas de fumo, dentro da escola, em espaços isolados, longe dos olhares das crianças e jovens.

De qualquer modo, penso que há actos que potencialmente poderão causar danos maiores do que outros: poderá causar mais danos às crianças do primeiro ciclo ter uma professora que pose exibicionisticamente para uma revista erótica (coisa que muito dificilmente compreenderão), do que ter professores que fumem à porta da escola.

De qualquer modo, ambos os casos chocam com o princípio do dano. E o facto de haver professores a fumar à frente das escolas deveria ser discutido e tal prática melhorada. Sempre com os olhos colocados nos melhores princípios éticos que deverão orientar a organização mais justa da sociedade.

(Bem vindo sejas, MCF, há quanto tempo...!)

Abraço

MCF disse...

Ehehe, numa noite sem muito para fazer, decidi que vinha pensar.

Respondendo, não sei até que ponto o príncipio do dano possa ser aplicado, o que sempre me pareceu um princípio perfeito para a definição liberdade, começa a parecer-me imperfeito na minha mente, o que me leva a crer que a liberdade varia de pessoa para pessoa. Afinal, pode-me causar dano alguém a expôr ideias socialistas á minha frente. Tal como pode causar dano a outra pessoa um simples acto como espreguirçar-me. Sim, causou, aparentemente, bastante dano a uma professora minha do 9 ano quando um colega meu se espreguiçou na sala de aula, enquanto eu nem percebia o porquê de todo aquele incómoda por parte da professora.

Miguel Portugal disse...

Tens razão, MCF. É claro que definir aquilo que causará dano ao outro não é nada fácil. Esse é, aliás, o maior problema desta teoria da liberdade como tudo aquilo que não causa dano aos outros. É preciso saber o que é que causa e o que é que não causa dano. Mas isso não quer dizer que seja um conceito vazio ou absurdo. O dano é tudo aquilo que possa interferir, de facto, com a liberdade do outro. Mais fácil é compreender este conceito quando aplicado ao caso específico: parece-me, pelo menos, uma questão de precaução e bom senso, um professor não se envolver em actos que directa ou indirectamente impliquem a sexualidade explícita e pública, quando se sabe que: 1. a sexualidade implica uma maturidade psicológica que as crianças não têm; e 2. o professor é um modelo que irá ser imitado pelas crianças. Daqui se segue, no mais elementar bom senso, que o professor deve evitar acções controversas. Caso contrário, estará a colocar em jogo, de uma forma descuidada (profissionalmente incompetente!), a liberdade dos alunos, no sentido que poderá estar a orientá-los num sentido que eles e, o mais importante, os seus encarregados de educação não escolheram! Se as crianças pudessem escolher ou os seus pais o tivessem escolhido, não haveria nada a dizer: imagine-se uma seita, religiosa ou não, que entendesse que as crianças deveriam ser educadas com exibicionismo sexual ou erótico; nenhuma instituição de um estado liberal teria, em princípio, legitimidade para o impedir. Mas se tais práticas fossem mesmo lesivas do equilíbrio psicológico das crianças, o bem organizado estado liberal deve preocupar-se com o desenvolvimento adequado de todos os seus membros, sobretudo crianças, em vista da liberdade igual para todos.

Agora, claro que um aluno espreguiçar-se numa sala de aula, não parece lesar ninguém. A não ser que perturbe a atenção dos restantes e, assim, coloque em causa o ambiente de aula, que existe para que todos possam aprender, isto é, para que todos possam almejar uma maior liberdade!
Em muitas escolas dos E.U.A. os alunos podem estar como quiserem dentro da sala de aula (chapéu, mascar chicletes, ouvir mp3...), desde que não perturbem (que não causem dano!) aos outros, incluindo o professor, porque uma aula serve para se ensinar e aprender e não é um local de diversão. Mas há que não esquecer que todas as comunidades, incluindo as liberais, se regem por valores, hábitos e normas comuns; muitas vezes transformam-se em preconceitos; mas o importante é poder convencer os outros de que este ou aquele valor afinal é um preconceito. Um professor não é um artista, para revolucionar, com a sua acção, os costumes e dinamitar os reconceitos. Um professor (mesmo de filosofia!) deve convencer, cautelosamente, crítica e rigorosamente, mas com toda a serenidade e cautela possível para que possa ser levado a sério.

Abraço!