quinta-feira, 19 de julho de 2007

Assalto à liberdade (de imprensa)!

Afinal, não são apenas os jornalistas portugueses que se insurgem contra as alterações previstas ao seu estatuto profissional, que, como outros estatutos profissionais, vai sofrer alterações altamente polémicas à revelia dos próprios profissionais, numa atitude de arrogante paternalismo político que se pensava já ultrapassado. Também a comissária europeia para os assuntos dos media já se apercebeu que o governo português se prepara para uma interferência desproporcionada e despropositada na liberdade de informar.

O que está verdadeiramente em causa na proposta governamental de alteração do estatuto dos jornalistas é a liberdade de imprensa. Ao interferir mais profundamente, por exemplo, no sigilo profissional e no procedimento disciplinar, o governo toca, despudoradamente, num dos principais fundamentos das democracias modernas, que é a liberdade.


A liberdade tem sido entendida em dois sentidos: a liberdade negativa e a liberdade positiva. A primeira é definida como a ausência de «interferência deliberada de outros seres humanos numa área em que, não fosse essa interferência, eu poderia actuar» (Isaiah Berlin). Assim, a liberdade é maior onde existe menos restrição ou interferência. Este é o sentido de liberdade normalmente subjacente a uma concepção liberal da organização política da sociedade. Mas todos os liberais reconhecem serem necessárias algumas restrições, estabelecidas pela lei, à liberdade, em nome da coesão, da justiça ou de outros valores sociais, embora divirjam em quais devam ser tais restrições e embora haja mesmo quem defenda (os “libertários”) uma severa redução da legislação restritiva e das actividades do governo.

Ora, este governo socialista, apesar de empreender políticas na linha do já chamado socialismo liberal, ao intervir deste modo numa área como o estatuto profissional do jornalismo – cuja acção deve ser regulada (além da lei comum) por uma deontologia profissional –, não está decididamente a defender a liberdade de imprensa (mesmo que o suposto desejo fosse alargá-la!), limitando isso sim, a priori, a actuação do indivíduo que, não fosse essa interferência legislativa exagerada, poderia decidir livremente (e agora já não o poderá efectivamente fazer!) procurar informação e torná-la pública, sujeitando-se muito naturalmente ao escrutínio público e judicial da veracidade da informação e das suas implicações na liberdade dos outros.

Por outro lado, o sentido positivo de entender a liberdade faz dela a posse de direitos cujo exercício é benéfico para aquele que os possui, aumentando a autonomia e a autodeterminação do indivíduo. Este sentido de liberdade está muitas vezes ligada ao conceito de cidadania, que implica um amplo âmbito de direitos civis, políticos e sociais. Neste sentido, os pensadores socialistas tendem a defender que, para a liberdade não ser uma simples noção abstracta e vazia, então devem existir condições nas quais os indivíduos possam efectivamente exercer a sua liberdade a fim de alcançarem o grau máximo de auto-realização e autonomia de que forem capazes.

Ora, entre tais direitos encontra-se o livre acesso à informação, para, desse modo, o cidadão estar em condições de, autonomamente, tomar as suas decisões e formar as suas opiniões acerca dos assuntos públicos. A haver um forte intervencionismo governativo na liberdade de informação, no intuito de aumentar a sua regulamentação, introduzirá novas limitações à liberdade individual, por via da intimidação do jornalista na procura da verdadeira informação.

Em suma: quer de uma perspectiva liberal – em que a liberdade é sobretudo entendida como ausência possível de interferência na acção individual –, quer de uma perspectiva socialista – que defende uma cidadania mais esclarecida e informada para aumentar a qualidade da existência livre e autónoma dos indivíduos –, esta proposta de lei do governo revela um forte (e mal disfarçado!) ataque a direitos fundamentais e, portanto, um intervencionismo que se aproxima do centralismo e de uma certa atitude ditatorial disfarçada de democracia, que tem vindo a ser cada vez mais visível no estilo governativo.

Afinal, qual o fundo político destas intervenções governativas? A não existirem outros motivos, terão que existir motivos ideológicos, filosóficos ou políticos claros, que justifiquem semelhantes intervenções governativas. É dever de um governo democrático esclarecer os cidadãos sobre as fulcrais intervenções legislativas nas suas vidas.

Apertar o cerco ao jornalismo é apertar o cerco à investigação da verdade pública, à discussão plural e aberta dos problemas políticos e à sua transparente divulgação. É aumentar o receio de manipulação de informação e de entronização do poder político. É, por isso, vedar o acesso público à vida pública, interferindo excessivamente num instrumento central da cidadania e da vida livre, que é a liberdade de imprensa.

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