terça-feira, 9 de setembro de 2008

O que se joga na construção de uma barragem

(Cahora Bassa, Moçambique)
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Dois dos maiores problemas do mundo actual são a falta de recursos hídricos e a crise energética. Com o crescimento da população, o aumento da poluição de rios e lagos, entre outros, a crise da água é um facto que deve preocupar os decisores políticos, mas igualmente a sociedade em geral. Também devido ao aumento populacional e ao desenvolvimento das sociedades aumentou a procura e o consumo de energia em todo o mundo, de que a crise do petróleo é um exemplo paradigmático. A construção de barragens tem sido uma solução clássica atraente para resolver os dois problemas: aumenta as reservas de água e propicia a produção de energia.
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Contudo, com a construção de barragens jogam-se, irremediavelmente, possibilidades que nem sempre são consciente nem amplamente debatidas. A destruição de habitats naturais, de flora e fauna, colocam em causa o equilíbrio ecológico, que, em última análise, terá efeitos nefastos na cadeia alimentar humana, no ambiente (contribuindo, por exemplo, para as alterações climáticas) e na investigação científica (a biodiversidade é, por exemplo, um amplo reservatório de soluções medicinais ainda por conhecer, que cada vez se encontra mais reduzido – ao desaparecer uma espécie viva, animal ou vegetal, podem estar a perder-se, irremediavelmente, substâncias químicas que poderiam vir a ser fundamentais na produção de medicamentos, bem como possibilidades de conhecimento, de maior compreensão do mundo em que vivemos).
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Mas com a construção de uma barragem joga-se também uma alteração morfológica profunda da geografia dos locais, irrecuperável no futuro. Quando se constrói uma barragem está a alterar-se para sempre (note-se o peso deste PARA SEMPRE!) a paisagem natural de um vale, que o ser humano futuro jamais poderá recuperar. Caso se venham a encontrar, no futuro, outras soluções para os problemas que as barragens, hoje, pretendem resolver, os vindouros muito dificilmente (para não dizer que será completamente impossível!) poderão desconstruir as barragens e recolocar no seu lugar os vales e montanhas com fauna e flora primitiva e, assim, poderem vir a beneficiar da sua vital importância!
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E para além daquele impacto ecológico referido, a construção de uma barragem poderá colocar igualmente em causa coisas de grande valor, como uma paisagem única e esteticamente valiosa e ou um potencial investimento turístico e consequente mais-valia para o desenvolvimento económico de uma região, como é o caso do vale do Tua, serpenteado pela bela linha férrea. (Não podemos esquecer que o nosso país tem condições naturais excepcionais para atrair turismo; no caso, a linha do Tua é um claro exemplo de potencial turístico de elevada qualidade, bem diferente daquele potenciado por uma artificial albufeira!)
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Ora, escolher simplesmente (demasiado simplesmente) uma barragem em detrimento de uma paisagem e infra-estrutura ferroviária patrimonial – com potencial turístico de futuro, com amplo espectro no mercado turístico europeu e mundial e com consequentes mais-valias económicas evidentes para a região –, com base no argumento da necessidade de construir mais um reservatório aquífero e uma central de produção energética tem um grave e profundo significado. Significa que se está, inconscientemente, a reduzir o ser humano a um animal consumidor de energia e de água, como se ser humano consistisse apenas em consumir água e energia. Trata-se de uma desumanização do homem e da sua consequente animalização.
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Por um lado, é claro que a água é condição necessária de sobrevivência do ser humano no mundo (sem água não há vida, incluindo vida humana). Mas a água não é uma condição suficiente – é preciso algo mais do que água para se viver como ser humano; são igualmente necessários, designadamente, locais que proporcionem experiências estéticas significativas, como belas paisagens miradas através de uma janela de um calmo comboio, bem como fontes de rendimento para as populações. Por outro lado, há outras fontes de produção de energia e, de qualquer modo, talvez se pudesse, neste caso, construir a barragem noutro local da bacia do Tua ou mesmo noutra bacia e, assim, conciliar as duas coisas.
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Sendo a experiência estética uma das mais gratificantes e profundamente constitutivas da nossa humanidade, de que somos capazes, e tratando-se a linha do Tua de um dos mais belos percursos ferroviários da Europa, então, além de valor patrimonial, pode, caso seja alvo de uma exploração profissional e sustentada, vir a ter um valor turístico ainda maior e vir a transformar-se, de facto, numa mais-valia para o desenvolvimento económico da região.
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Ficar sem o único rio selvagem português (com a construção da barragem do Baixo Sabor) e sem a sui generis linha ferroviária do Tua (com a construção da Barragem do Tua) é talvez perder demasiado em troca de ganhos bem menos valiosos e inevitáveis do que se faz crer!Seria, pois, bom que, ao invés de se pretender realizar dogmaticamente programas de governo, de modo completamente descontextualizado e linear, se compreendesse profundamente o que se joga na construção de uma barragem – particularmente nesta – e que se fizesse da decisão política uma decisão verdadeiramente ponderada, sustentada e partilhada!
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(Publicado in Terra Quente, 15-08-2008)

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