quinta-feira, 1 de julho de 2010

Homossexualidade. 6. Contra os valores da família?

Um último argumento poderoso contra a permissibilidade ética da homossexualidade é o de que esta põe em causa os valores da família. A família é uma instituição social composta por dois progenitores e respectiva prole, em que os primeiros têm, para além da função reprodutora, uma função educativa determinante na vida dos segundos. Segundo este argumento, dois homens ou duas mulheres não poderão constituir uma família equilibrada – a homossexualidade colocaria em causa o valor da família, tal como, nesta linha de pensamento, o aborto, a pornografia, o adultério ou o divórcio, já que provocariam alterações estruturais, que, aos olhos de muitos, afectariam profundamente a estrutura e, concomitantemente, o valor desta fundacional instituição social.

No entanto, os activistas defensores dos direitos dos homossexuais propõem, precisamente, que sejam alargados aos homossexuais os direitos socialmente reconhecidos de constituírem família, através do casamento, da adopção ou da fecundação medicamente assistida. O contra-argumento é o de que os valores da família seriam, isso sim, reforçados, dadas as maiores possibilidades de constituição desta instituição social.

De qualquer modo, resta um problema relativo à educação dos filhos. Sabemos, através da Psicologia, que as crianças aprendem através da observação e imitação de modelos. Os papéis sociais de homem e mulher, como os papéis sociais inerentes às várias actividades profissionais são aprendidos por observação e imitação. Uma das questões que se podem levantar é a de que uma rapariga que crescesse no seio de um casal constituído por dois homens não teria um modelo feminino pelo qual apreender a feminilidade e o mesmo poderia acontecer com um rapaz que crescesse numa família constituída por duas mulheres (seria privado do modelo masculino do pai).

Esta parece ser a única objecção realmente importante à permissibilidade ética da homossexualidade por via dos valores da família: a família homossexual talvez não fosse uma estrutura familiar perfeita para as crianças. Mas ainda assim se poderia dizer que há muitas outras situações em que as circunstâncias familiares não são as ideias para as crianças. No caso, por exemplo, da fecundação medicamente assistida, os constrangimentos éticos que se levantam para um casal homossexual são praticamente os mesmos que se colocam para um casal heterossexual. Por isso, não há razões para tratar estes casos de modo diferenciado. E, no caso específico da adopção, podemos legitimamente pensar que seria realmente melhor para uma criança, do ponto de vista do seu desenvolvimento psicológico, crescer no seio de uma família constituída por um casal homossexual do que numa instituição de acolhimento, com todos os seus problemas característicos.

Há outras objecções muito comuns contra a permissibilidade ética da homossexualidade, com base nos valores da família, que, contudo, não têm fundamento racional. A mais comum, sobretudo em meios mais fundamentalistas religiosos, é a de que a homossexualidade é condenada na Bíblia: «Não podes deitar-te com homem como com mulher; é uma abominação.» (Levítico, 18:22). Muitos comentadores referem que esta e outras passagens da Bíblia não são assim tão severas para com a homssexualidade, se forem devidamente interpretadas. Além disso, o mesmo Levítico prescreve comportamentos que são hoje, aos olhos da nossa racionalidade, manifestamente arbitrários (v.g., proíbe a ingestão de gorduras, 7:23; proíbe uma mulher de ir à missa até 42 dias depois de dar à luz, 12:4-45; proíbe-nos de ver o nosso tio nu, o que considera uma abominação, 18:14,26; a barba deve ter uma forma quadrada, 19:27; entre outros).

Mas a questão mais fundamental nem é essa. A questão é a de que uma acção não pode ser considerada eticamente correcta ou incorrecta simplesmente porque alguém o diz ou algum livro, por muito importantes que o sejam, o prescreve. Se o que alguém diz ou o que, neste caso, está escrito na Bíblia não é arbitrário, então deve haver boas razões para o aceitarmos. Caso contrário, estaríamos a incorrer na chamada falácia de autoridade – argumento que nos faz aceitar a verdade de uma tese apenas porque foi defendida por uma suposta autoridade.

Assim, muitos argumentos são normalmente invocados para defender a impermissibilidade ética da homossexualidade, mas muito poucos expressam efectivamente boas razões para aceitarmos tal ideia. Mesmo os mais importantes – o de que a homossexualidade é contrária à natureza e o de que vai contra os valores da família –, apresentam fortes debilidades, quando não é clara a definição daquilo que seria conforme a natureza, nem como pode a homossexualidade contrariar, mais do que outras práticas menos atacadas, os valores da família. A não ser o argumento de que as crianças (mesmo adoptadas) poderão sofrer uma interferência menos adequada ao seu desenvolvimento psicológico harmonioso se crescerem no seio de uma família de homossexuais, dada a ausência do modelo feminino ou masculino, não se vê quaisquer outras boas razões para não admitir, como perfeitamente plausível, a permissibilidade ética da homossexualidade.
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Fontes (para tudo):
James Rachels, Elementos de Filosofia Moral, trad. port. F. J. Azevedo Gonçalves (Lisboa: Gradiva, 2004) 71-75.
Robert Feldman, Compreender a Psicologia, trad. port. Luís M. Neto et al. (Lisboa: McGraw-Hill, 2001) 361-397.
Brent Pickett, "Homosexuality", Stanford Encyclopedia of Phylosophy

2 comentários:

José Carlos Tavares disse...

Estou farto de ouvir dizer que as crianças que crescem e se desenvolvem no seio de familias homossexuais acabam por imitar o modelo onde se desenvolvem.Eu cresi no seio de uma familia heterossexual assim como a esmagadora maioria dos gays e lésbicas e não foi por isso que viemos a ser heterossexuais.
Quanto à ausencia de referencias masculinas ou femininas nas crianças que crescem com pais gays ou lésbicas também é uma falácia,pois os casais gays têm amigas ,mães,irmãs,tias onde todas as crianças podem disfrutar da sua companhia assim como no caso dos casais de lésbicas.

Miguel Portugal disse...

1. O que pretendi dizer acerca da modelização não é a ideia, talvez corriqueira, de quzalquer modo demasiado simplista, de que filhos de casais homossexuais teriam mais probabilidades de vir a assumnir essa orientação sexual. Pelo contrário, tanto quanto se sabe, a homossexualidade é mais inata do que adquirida. O que pretendi dizer foi que as crianças aprendem comportamentos sociais (e não orientações sexuais) por observação e imitação de modelos, mas no que toca sobretudo a comportamentos sociais tipicamente femininos e masculinos (socialização).

2. Por outro lado, esta ideia de aprendizagem por modelização não é, certamente, uma verdade última. É, naturalmente, sempre discutível. Mas não é, com certeza, uma simples opinião assente em emoções ou interesses particulares; é, isso sim, uma teoria científica, o que torna o argumento perfeitamente razoável. É um argumento criticável. Mas, simples emoções, como as expressas pela expressão usada pelo José Carlos («estou farto de ouvir dizer que…»), não constituem bons argumentos, pois trata-se justamente de emoções e não de razões. Quando se trata de pensar de modo desinteressado (ou apenas com interesse cognitivo), só as boas razões contam para tentar sustentar teorias.

3. Já o facto de filhos de casais homossexuais terem contactos com outros modelos adultos (tios/tias) julgo que já se deve considerar verdadeiramente um bom argumento, passível de análise racional. De qualquer modo não deixa de ter a fragilidade seguinte: a influência do pai e da mãe, enquanto modelos de socialização, é superior, pelo menos na primeira infância, à de outros adultos; estando um deles ausente, poderia, eventualmente, advir daí algum problema. Mas concordo que possa ser um bom contra-argumento para tentar deitar por terra uma das únicas, senão a única, boa razão para colocar em causa a permissibilidade ética da homossexualidade.