O argumento ético menos incontroverso a favor da permissividade do aborto (vide “Aborto 2. A posição pró-vida e posição pró-escolha”) defende que, apesar do feto ter o direito moral à vida, este não tem o direito de utilizar o corpo da mulher contra vontade desta; o aborto consiste em retirar o apoio vital ao feto e não em matá-lo; logo, o aborto é eticamente permissível. Ora, é claro que apesar da intenção não ser matar o feto, o aborto acaba por ser inequivocamente um acto de matar, que, aliás, o próprio argumento liberalizador acaba, implicitamente, por admitir: retirar o apoio vital ao feto não é outra coisa senão impedir que continue a viver.
Mas há argumentos mais controversos, devido às consequências éticas que encerram, como é o caso do argumento seguinte: já que a ciência não consegue encontrar um critério para decidir quando passa a haver vida humana, então há que encontrar um critério ético; ora, o que caracteriza o ser humano dando-lhe valor moral é a consciência de si e a racionalidade, sendo estas as condições para adquirir o direito à vida; como o feto não possui nenhuma delas, então o feto não tem o direito à vida; logo, o aborto é eticamente permissível. Bem se vê o problema deste argumento: é que teríamos que prosseguir na fase de desenvolvimento do recém nascido à procura da fase em que a criança adquiriria, por muito elementar que fossem, tais características. Ora, hoje a ciência sabe que o recém nascido não tem ainda consciência de si, coisa que talvez só comece a acontecer com as primeiras manifestações do eu, durante o segundo ano após o nascimento, e pela racionalidade será preciso esperar talvez, em rigor, até cerca dos 6 ou 7 anos, quando a criança atinge o que Piaget definiu como o estádio das operações concretas. Ou seja, defender o direito à vida com base nas características da consciência de si e da racionalidade implica aceitar a permissividade ética... do infanticídio! Se não há qualquer razão que impeça, mesmo que sejam apenas os progenitores ou mesmo apenas a própria mãe, a interromper a vida intra-uterina do ser humano, também não as há para interromper a vida após o nascimento, pelo menos até a criança ter atingido ao menos uma (e bastaria apenas uma?) das características apresentadas como definidoras do ser humano eticamente seguro pelo direito à vida!
Porém, não seria justo deixar por analisar talvez o argumento mais apelativo em defesa do direito à escolha. Apesar de matar ser um mal porque priva a vítima de um futuro com valor, este valor apenas surge a partir do momento em que o indivíduo tenha desejos conscientes actuais que possam ser satisfeitos se o seu futuro pessoal for preservado. Ora, um recém-nascido pode ter este tipo de desejos, quando deseja desfrutar a sensação de calor ou saciar a fome e, por isso, devemos preservar o seu futuro. Mas, apesar dos desejos deste género surgirem, de forma bastante limitada, no próprio feto algum tempo antes do nascimento (quando começa a apreciar a experiência consciente de ouvir a voz da sua mãe), não existem nas primeiras semanas. Portanto, apesar de matar um feto na fase final da sua gestação ser um mal, tal não implica necessariamente que abortar nas primeiras semanas o seja.
No entanto, esta argumentação é perfeitamente contrariada justamente pela argumentação que pretendia contrariar e que, portanto, não o consegue fazer! (Vide “Aborto 2. A posição pró-vida e posição pró-escolha”) Apesar do feto, nas primeiras semanas de gestação, não possuir desejos conscientes, naquela altura, que possam ser satisfeitos se o seu futuro pessoal for preservado, ele possuí-los-á muito em breve, caso lhe seja permitido viver até lá! Por isso, é eticamente impermissível abortar, pois estaríamos, de qualquer modo, a privar aquele ser em gestação de um futuro como o nosso, isto é, à partida, pleno de possibilidades de futuras experiências com valor.
A solução parece ser, pois, apelar à potencialidade da vida humana nas primeiras fases de desenvolvimento intra-uterino, ideia que não é tão controversa quanto parece. Todavia, é necessário precisar, obviamente, o seguinte: uma bolota não é um carvalho, tal como um espermatozóide ou um óvulo não são um ser humano! Mas o zigoto já não é uma bolota (nem espermatozóide nem óvulo), é a primeira fase do processo de gestação de um ser humano. O zigoto percorre as trompas de falópio até ao útero iniciando aí a nidação, ou seja, a fase de implantação, criando vilosidades (“raízes”) para se agarrar ao útero. Desde a fecundação até ao final dos primeiros 14 dias (até ao final da nidação e início da fase a que se chama propriamente feto), ainda podem ocorrer grandes alterações no então chamado blastocisto – pode, por exemplo, dividir-se em dois ou mais, formando gémeos, ou mesmo interromper-se naturalmente a mitose (o desenvolvimento celular), isto até sem que a própria mulher se tenha apercebido que tinha iniciado o processo de gravidez. Mas há, de facto, um salto qualitativo das células estaminais óvulo e espermatozóide para o zigoto, que inicia um desenvolvimento continuum, que, apesar de poder ser interrompido naturalmente, não deixa de ser um processo que, se tudo “correr bem”, levará o embrião a feto, depois ao nascimento, depois ao desencadear da consciência de si mesmo e de mundo, com a ajuda de características mentais sofisticadas, como a racionalidade, que se desenvolverão, atingirão o seu auge e que, depois, começarão lentamente a definhar... até à morte.
É claro que poderíamos sempre contrapor ao argumento de que o feto é uma vida humana em potência e que por isso tem o direito à vida, que o facto de ser em potência não lhe concede certos direitos como se fosse já em acto, já uma pessoa humana. Poderíamos dizer, invocando uma analogia usada para refutar aquele argumento, que o Presidente da República tem o direito de dissolver o Parlamento e eu sou um potencial Presidente da República, mas daí não se segue que eu realmente possua agora esse direito de dissolver o Parlamento! Pois, é certo que eu não possuo agora esse direito. Mas se continuar a viver, se me candidatar à Presidência da República e for eleito, então estarei obviamente em situação de adquirir tal direito. De qualquer modo, a analogia não é justa, pois o que está em questão – o direito à vida de um ser humano em fase embrionária – é algo bem mais crucial. Não se trata de um qualquer direito; trata-se do direito mais fundamental e reconhecido como tal pelas leis constitucionais e pelas declarações de direitos humanos – o direito à vida. Sem passar pela fase embrionária, o ser humano não poderá efectivamente ser o que é. Então, isso faz da fase embrionária uma fase absolutamente integrante do desenvolvimento do ser humano, que nunca seria o que poderia vir a ser, sem ela. E como o seu desenvolvimento é um continuum, então o direito à vida existe desde o início, salvaguardando, muito sensata e naturalmente, raras e eticamente bem fundadas excepções.