quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Aborto sem aconselhamento obrigatório – que irracional pavor das obrigações!

O líder parlamentar do P.S. declarou: a nova lei do aborto é uma lei equilibrada, porque tem em conta o valor fundamental em questão – a decisão livre (?), consciente (?!) e responsável (?) da mulher!

Será, isso sim, tantas vezes, uma decisão aprisionada das circunstâncias sociais, económicas e educacionais/culturais de tantas mulheres, que não estarão cientes, não saberão, não terão acesso a todas as informações sobre a interrupção da gravidez e que, portanto, verão a sua responsabilidade mitigada por tais grilhões, que as continuarão a subjugar nas suas vidas miseráveis e infelizes! Isto, claro, são... divagações!! Só para divagar mais um bocadinho... – os problemas sociais, económicos e educacionais/culturais destas mulheres, claro está, não interessa verdadeiramente resolver! Desde que elas sejam (pseudo-)livres!

Caso não reinasse a obstinação e intolerância ideológica, o aconselhamento obrigatório seria um precioso auxílio solidário a tantas mulheres social, económica e culturalmente condicionadas, que – só ignorando evidências da Psicologia humana é que não concordaremos com tal – muito facilmente fugirão desse apoio facultativo. A obrigatoriedade do aconselhamento sairia em defesa... da MULHER e da sua efectivamente livre, consciente e responsável decisão (que continuaria a ser sua)!

Estas fugas para a frente só demonstram a impotência política e o atraso civilizacional de (um certo) Portugal!

(P.S. – os alemães são mesmo atrasados!)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Leituras...

O que é o Ocidente?, de Philippe Nemo – investigador e professor de Ciências Sociais e Políticas na ESCP-AEP (Paris) –, publicado em português pelas Edições 70, é um ensaio brilhante e uma síntese excelente sobre a identidade civilizacional e cultural do Ocidente, que é a nossa, com uma curiosa mas lúcida e racional proposta de União Ocidental: uma estrutura política confederativa, que espelhasse institucionalmente a união dos países da civilização ocidental em torno de uma cultura democrática liberal.

Uma proposta de arranjo político, no mínimo, a não ignorar, assente numa caracterização decerto muito pouco controversa da cultura ocidental – o milagre grego da cidade e da ciência, o direito privado e o humanismo romanos, a ética e escatologia bíblicas e o liberalismo intelectual e político modernos – e que dela deduz uma corajosa organização política que garanta o futuro da nossa civilização, mas também do mundo.

Mostrando as fragilidades dos consensos políticos, que empobrecem a diversidade de cada matriz cultural, o autor advoga um efectivo diálogo entre civilizações, que assente na argumentação racional convincente, sem apagar a riqueza do pluralismo intelectual, devendo, para tal, cada civilização se esforçar por um conhecimento de si que fortaleça o diálogo em busca da melhor verdade.

(Inclui uma bem justificada solução crítica para problemas actuais, como o impasse constitucional da União Europeia e as relações políticas entre U.E. e E.U.A.!)

Mesmo sem se identificar com a postura liberal da proposta ensaiada pelo autor, é leitura obrigatória para quem quer ampliar a cidadania e consciência de si (via matriz cultural) ou deseje instrumentos críticos de análise e conhecimentos sólidos sobre o húmus civilizacional do sol poente.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Finalmente...

...SCORSESE! Depois de 1/4 de século (é muito tempo!) de filmes desde a primeira de seis nomeações para melhor realizador, eis finalmente o reconhecimento da Academia. Entre amigos também há destas coisas!
Ah! E a Academia não foi politicamente correcta! Lá premiou Uma Verdade Inconveniente como melhor documentário. A Ecologia subiu ao palco?!

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

A propósito do TUA e do T.G.V. – uma curiosidade!!

© Miguel Portugal
«O esquecimento do mundo da vida está hoje patente no crescimento imparável da velocidade, que fascina a nossa idade técnica e tem sido investigada nos nossos dias pela Dromologia. Para P. Virilio, só quem foi veloz, pôde controlar o território, dominar e possuir. O nómada fez conquistas mas o cavaleiro veloz dominou-o e fez dos lavradores vassalos. Por isso, o binómio senhor-escravo está historicamente ligado à velocidade. A história do mundo é a eliminação sucessiva das forças mais fracas pelas mais velozes e, na sequência lógica desta interpretação, hoje a velocidade vencedora não é a dos automóveis ou a dos aviões mas a velocidade absoluta da luz, que subordinará totalmente o homem, preso de uma imobilidade mortal directamente proporcional à velocidade, que não possui (...).


© Miguel Portugal
(...)
Ao destino da inércia, da paralisia, da imobilidade está condenado o homem pela velocidade da luz, que mudará a essência da guerra, tornando-a pura, total, com velocidade ondulatória absoluta, sem vítimas, porque imobilizará o inimigo absolutamente incapaz de reacção. “Tudo tende para a paralisação, para a inércia” (M. Jakob / P. Virilio). É ilusório nos nossos dias o discurso sobre o novo nomadismo, porque é irresistível a tendência profunda para a imobilidade, a estática, a inércia, a deficiência: “O deficiente, que hoje passeia no seu carro – uma obra tecnológica admirável – é um pioneiro, pois o nosso futuro é sermos inválidos equipados com próteses” (M. Jakob / P. Virilio).

© Miguel Portugal
(...)
Quanto mais rápidos forem os meios de transporte, menos nos movemos e, por isso, o limite, para o qual hoje contribui o tacto e o olfacto à distância, é a paralisação, o estado patológico da imobilidade absoluta. Por isso, perdemos a experiência de caminho e de viagem, essencial à busca de sentido. Outrora a viagem constava de partida, de viagem propriamente dita e de chegada. Com o comboio e, sobretudo, o avião, a viagem foi progressivamente dominada pelo sentimento de chegada e tende a coincidir com esta, enquanto o tempo intercalar é tempo perdido, por vezes aproveitado para dormir ou ver um filme. No tempo da imobilidade gerada pela velocidade-limite, não nos movemos apenas fisicamente como na idade do automóvel, mas nem sequer teremos necessidade de sair de casa, pois toda a realidade nos será trazida ao domicílio e nós pagaremos, com a perda de mundo na sua extensão e duração, com o cárcere doméstico, a factura da imobilidade universal.»

Miguel Baptista Pereira, “A crise do mundo da vida no universo mediático contemporâneo” in Revista Filosófica de Coimbra, 8 (1995) 273-6.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Da serenidade do Tua à velocidade do TGV

O milagroso T.G.V. a preparar-se apressadamente para passar e os comboios no belo Tua calmamente a caírem!
Num país de P.G.V. (politique à grand vitesse) são esquecidos os problemas profundos, estruturais do interior, por força da megalomania da rapidez litoral e, no fundo, periférica! É claro que o centro da sociedade portuguesa deve passar também por ser o espaço interior, as pequenas e médias cidades do Alentejo, Beiras, Trás-os-Montes, que deveriam já ter tido o mesmo interesse estratégico por parte do poder político, como tiveram as suas congéneres europeias! Já se sabe, hoje, que os problemas das grandes cidades se resolvem com investimentos estruturais nas pequenas e médias cidades disseminadas pelo restante território. A periferia, essa deveria ser apenas um conceito geográfico, mas não humano, social, económico, nem cultural.
É claro que tal não significa um desinvestimento sistemático nas zonas do litoral e nas grandes cidades. Mas se há justificação económica e política para o T.G.V -- na perspectiva do desenvolvimento económico e até com repercussões, ainda que indirectas, para o desenvolvimento económico do interior -- a relação custo-benefício não parece, por outro lado, justificar a Ota. No lugar desta megalomania insensata para as finanças públicas, outras necessidades há -- agora -- para suprir, designadamente na tentativa de esbater as assimetrias litoral-interior, como já aconteceu noutros países da Europa. Porque não -- depois -- interiorizar (ou, pelo menos, descentrar um pouco mais) o novo aeroporto internacional?

Nova lei do aborto -- aconselhar não é decidir!

Afinal, o aborto sempre foi liberalizado! Tanto o Primeiro-Ministro como o líder parlamentar do PS têm defendido, neste pós-referendo, que a opção pelas comissões de aconselhamento (obrigatórias, por exemplo, na Alemanha) não seria coerente com a «decisão da mulher», expressão (e ideia) referendada!
1. Mas, então será que a Alemanha não é um país civilizado (em que reinam os mais elevados e modernos valores)? Será que não é liberal (em que todos, incluindo as mulheres, têm o máximo de liberdade possível)? Será que não é democrático (em que se respeitam os resultados dos referendos)? Será que não é um estado laico?! Ou será mesmo que é irracionalmente conservador?! Não é, pois, nada disto que está em questão! A Alemanha é, evidentemente, apenas uma sociedade que procura resolver os seus mais complexos problemas, como o problema ético-político do aborto, de uma forma complexa -- sensata, ponderada e em equilíbrio reflexivo.
2. Mas para que servem estas comissões? É claro que não são um conjunto de homenzinhos ou mulherzinhas que se querem "meter" na vida das mulheres (visão atávica e pré-moderna da ciência e da ética)! São um instrumento extremamente útil para auxiliar numa decisão complexa e díficil da mulher (e do homem?!). Mas cuidado com mais uma argumentação falaciosa, ocultada por um capricho político-ideológico: a decisão será sempre da mulher! Como se sabe (ou será que não sabem?!) uma decisão racional é precedida de um processo deliberativo, em que se ponderam opções alternativas, a fim de consolidar a decisão. Aconselhar não é, pois, decidir! Estamos perante mais uma contradição do PS, que, desta vez, parece deixar arrastar-se pela onda vermelha intolerante, que, aliada ao estilo obstinado do seu líder e nosso Primeiro-Ministro, pode conduzir a uma libertária (porque irracional e despropositadamente desregulada) consolidação da nova lei do aborto, completamente desajustada à nossa situação sócio-política actual.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Referendo – The day after

1. Eis, desafortunadamente, realizada a profecia: não foi verdadeiramente efectuado um amplo e público debate ético em torno do problema ético do aborto. Desconheço qualquer debate havido, por exemplo, na comunicação social em que tenham participado académicos expertos na matéria, designadamente filósofos e investigadores (que os há em Portugal!) nas áreas da ética aplicada, da bioética, da embriologia e da biologia em geral. Esta é, pois, uma característica, não só da política portuguesa, mas também da sociedade portuguesa, ainda social e culturalmente pouco exigente, rigorosa e, pois, pouco desenvolvida e civilizada!
E isto, paradoxalmente, a arrepio de uma situação – louvável – de incremento da cidadania efectiva, que se verificou no empenho com que muitas pessoas se dedicaram a reflectir, a debater e a propagandear livremente as suas ideias. De qualquer modo, não podemos deixar de lamentar que, mesmo neste âmbito da participação política da sociedade (com que também se tece a sã cidadania), não tenha havido, ainda assim, um nível de participação reflexiva e um empenho na preparação colectiva para o referendo – como a matéria em questão exigia –, ainda mais elevados. Seria de esperar mais de certas pessoas com responsabilidades políticas, mas também culturais e educacionais no envolvimento nesta aventura argumentativa, que culminou num acto de democracia directa de grande importância, como é um referendo.

2. Apenas nos distritos do Norte, à excepção do Porto, e nas ilhas houve maior número de votos no NÃO.
Mas cuidado com as generalizações precipitadas! É que vai sendo muito fácil argumentar, embora de modo despudoradamente falacioso, que a penalização do aborto era uma característica conservadora, anti-moderna, que distanciava a nossa sociedade da vanguarda civilizacional europeia e ocidental! E que, portanto, as pessoas “cultas”, “civilizadas” votaram SIM e as menos cultas (dizia o Ministro Alberto Costa – as que sofrem o efeito da analfabetização e da iliteracia [mas estes problemas não se resolvem com referendos!]) teriam votado NÃO! (No mesmo sentido, aliás, dizia Francisco Louçã, o campeão da demagogia e da argumentação falaciosa neste referendo, talvez só ombreando [ainda assim, aquele uns degraus acima deste] com Marcelo Rebelo de Sousa: “eis-nos chegados ao séc. XXI!”)
É preciso saber que esses países, justamente tão citados como civilizacionalmente paradigmáticos, têm sido prolixos no pensamento rigoroso e aprofundado (pensamento ético académico) também em defesa da vida intra-uterina, fragmentando assim, por via do pensamento filosófico (“coisa” que nos países civilizados é culturalmente valorizada!), a sociedade culta em torno de uma problemática, por ora, insanável.
É claro que muitas pessoas que habitam o Norte e interior do país estão ainda manipuladas no seu pensamento pela influência religiosa e baixa formação escolar, o que não lhes permite um pensamento livre sobre matérias desta jaez. Mas é também não menos verdade que muitas pessoas que habitam fora destes nichos ecológicos(!), como nas grandes cidades do litoral, se libertaram desse jugo religioso, mas para se aprisionarem – não sejamos simplórios nas análises! – a outras fontes de manipulação do pensamento: os órgãos de comunicação social e os opinion makers, o exibicionismo consumista, o emotivismo espontâneo, os partidarismos, clubismos e outros bairrismos.
O que seria civilizacionalmente bom, não acontece – esse liberalismo é só aparente!

3. Agora sim! Sim, eu escrevi SIM! É que agora, sim, estamos finalmente a discutir os problemas políticos que realmente estão subjacentes ao problema do aborto: o planeamento familiar para todos, a educação sexual e, saliente-se, a EDUCAÇÃO tout court! Mas agora, são necessárias medidas políticas concretas para resolver estes problemas e, essas sim, são tão urgentes quão difíceis de implementar. O que seria agora de esperar, num país verdadeiramente democrático e civilizado, era um empenho igualmente forte da sociedade civil para exigir verdadeiras e derradeiras medidas executivas, nacionais e locais, e resultados na resolução efectiva destes problemas estruturantes.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Aborto 6. A solução

O problema ético do aborto parece estar longe de ter solução incontroversa e unânime. Nenhuma das partes conseguiu convencer a outra. Mas, o que fazer? Como agir, então? Obviamente que o problema das situações-limite vividas por mulheres sócio-cultural e economicamente desfavorecidas ou talvez até por algumas adolescentes em idade precoce, que engravidam, exige uma solução política adequada.
A solução da liberalização (vide "Aborto 5. Despenalizar é liberalizar?") é uma solução demasiado simplista e, horresco referens, demasiado fácil: já que há imensas mulheres que necessitam de abortar, então vamos tornar o aborto livre.
Ora, o que um Estado de Direito, bem ordenado, deveria fazer era, diferentemente, criar condições para evitar, pelo menos, a maior parte das situações-limite, que envolvem a hipótese de abortar: investir numa educação geral de qualidade, implementar a educação sexual nas escolas, responsabilizar efectivamente os encarregados de educação pela educabilidade dos seus filhos, promover um justo progresso económico, com pleno, qualificado e empenhado emprego... Ou seja, tudo matérias que têm lugar em muitos discursos políticos, mas que ainda teimam em não fazer parte da acção política dos eleitos para funções governativas. O que é necessário é, pois, empenho, inteligência e capacidade política de todos para solucionar o verdadeiro problema político, que está na origem, entre outros, do flagelo do aborto.
O problema é, pois, um pouco mais complexo e, naturalmente, de não fácil solução. Mas sendo complexo, exige uma solução complexa.
A solução da penalização reformulada é uma solução que, logicamente, tem em conta a controvérsia ética da questão e propõe uma solução política com base numa posição ética prudente. É mais adequado continuar a penalizar o aborto, na generalidade dos casos, e introduzir clarificações das excepções (por exemplo, porque não abranger adolescentes até aos 16 anos?) e ou alterar as penalizações a aplicar (a pena de prisão não é a única, nem adequada a todos os casos, se é que é adequada a algum!).
Só mantendo a penalização da prática do aborto livre, embora reformulando a lei existente, se consegue conciliar verdadeiramente, em bases éticas mais sólidas - porque mais razoáveis e menos incontroversas -, os valores em jogo: a liberdade da mulher e a vida do feto.
E também há boas razões político-jurídicas para manter a lei, embora necessariamente melhorada! E são muito simples: 1. as leis devem espelhar os valores da sociedade (o carácter proclamatório da lei), e se a sociedade em geral parece considerar o aborto eticamente incorrecto (afinal, todos são contra o aborto!), então o aborto livre deve continuar a ser penalizado; 2. as leis existem também para dissuadir os possíveis autores de actos eticamente inadmitidos pela sociedade.
É, pois, imperioso que a organização jurídica do Estado - por maioria de razão ética - continue a comunicar à sociedade, de modo claro, que, enquanto não houver mais certezas, é mais razoável continuar a proibir, em geral, a prática do aborto.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Aborto 5. Despenalizar é liberalizar?

Uma das clarificações conceptuais, que importa fazer, em prole do verdadeiro debate em torno da despenalização do aborto, é a que respeita aos conceitos de “despenalização” e “liberalização”. Se desejarmos ser claros teremos, pois, que definir, a priori, os conceitos envolvidos.
Despenalizar um acto significa que o Estado deixa de considerar tal acto como um delito – como algo suficientemente prejudicial ou mau para a vida social, que deva ser evitado ou, quando tal não for possível, punido o seu autor. Portanto, despenalizar consiste em deixar de se atribuir uma pena. Ou seja, se o aborto for despenalizado, deixa de ser crime fazê-lo.

Liberalizar é “tornar livre”, é “libertar”. Liberalizar um acto significa que sobre tal acto ou prática deixa de existir qualquer coacção, moral ou legal, isto é, deixa de ser impedido por leis civis ou reprovado por normas morais reconhecidas pela sociedade. Significa que o acto passa a ser livre, isto é, passa a depender unicamente da vontade da pessoa que o pratica. Ou seja, se o aborto for liberalizado, deixa de ser um acto penalizado juridicamente ou reprovado moralmente, passando a ser praticado por livre vontade da mulher.

Bom, como se pode constatar, as diferenças entre os dois conceitos são, senão meramente aparentes, pelo menos mínimas, superficiais e, mais, completamente irrelevantes para a questão da despenalização do aborto. Senão vejamos. Se o aborto for despenalizado, a mulher grávida pode interromper a sua gravidez por sua livre vontade, ou seja, livre de qualquer coacção, impedimento legal ou reprovação moralmente aceite pela sociedade. Como se vê, isto é justamente liberalizar a prática do aborto – torná-lo livre, ou seja, fazê-lo depender unicamente da vontade da mulher. Portanto, afirmar que o aborto deixará apenas de ser penalizado equivale – naquilo que é relevante para a questão – a afirmar que será liberalizado.

Mas, poderíamos objectar, apesar de despenalizado, isso talvez não tenha que significar, necessariamente, que não possa continuar a ser reprovado moralmente, até porque, diz-se, ninguém é obrigado a fazê-lo! Eis mais um equívoco, que tem sido obstáculo à verdadeira e rigorosa discussão, que importa desfazer (vide “Aborto 1. O que está verdadeiramente em questão”). É que não podemos desligar a questão política do aborto da sua problemática ética. E mais: a solução política deve, logicamente, alicerçar-se numa posição eticamente justificada. Não é, pois, possível que um acto da natureza do aborto seja eticamente reprovável (se o for, será pelas mesmas razões que é eticamente reprovável matar um ser humano como nós!) e, ao mesmo tempo, não seja considerado um delito – algo suficientemente prejudicial ou mau para a vida social, que deva ser evitado ou, se tal não for possível, punido o seu autor! Tal encerraria uma insanável contradição lógica. Ora, como o método reconhecido hoje pelas nossas sociedades contemporâneas como o mais adequado para justificar valores é o da argumentação, e como valorizamos, antes de mais, a argumentação racional, orientada pelos mais elementares princípios e regras lógicas (como o princípio da não contradição), então não podemos aceitar tal argumento. Portanto: só podemos, logicamente, despenalizar aquilo que consideramos não constituir mais um delito e só podemos deixar de considerar o aborto um delito, se deixarmos de o considerar imoral e passarmos a considerá-lo eticamente permissível.

Logo, devemos ter plena consciência que, ao despenalizar o aborto, estaríamos efectivamente – dir-se-ia, “para o bem e para o mal” – a liberalizar tal prática. Isto significa, claramente, que estaríamos a afirmar que deixamos de considerar imoral o acto de matar um feto humano (embora continuemos a pensar que é eticamente inaceitável matar um ser humano!) e passaríamos a considerar isso – matar um feto humano – um acto eticamente permissível.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

Aborto 4. Os argumentos civilizacionais

No debate sobre a questão da despenalização do aborto têm surgido dois “argumentos civilizacionais”, um para justificar a despenalização outro para justificar a não despenalização.

Os adeptos do “sim” tendem a argumentar que, como nos principais países civilizados do mundo, designadamente da Europa, já despenalizaram o aborto e querendo Portugal ser um país civilizado, ainda por cima membro da União Europeia, deverá logicamente também despenalizar o aborto, pelo menos até às dez semanas, desde que por opção da mulher e realizado em estabelecimento hospitalar público.

Ora, não é por certos países, em geral civilizados, por muitos que sejam, terem já despenalizado o aborto, que nós, se quisermos ser um país civilizado teremos necessariamente que o fazer rapidamente. É necessário que sejamos suficientemente críticos para questionarmos tal decisão, tal como nesses próprios países ela tem sido questionada! E se eles se enganaram?!

O problema daquele argumento reside na primeira premissa, que quer fazer supor, sem o conseguir provar, que a despenalização do aborto é uma característica indicadora de progresso civilizacional. Além de saber se é efectivamente uma característica de progresso civilizacional, seria necessário saber também qual o grau de importância dessa característica! Mas não nos iludamos com a Ética e o Direito Comparados! O que de facto aconteceu é que, após o Baby Boom do pós-guerra seguiu-se efectivamente, nos anos 70, uma vaga de despenalização do aborto em muitos países ocidentais, dos Estados Unidos da América à Austrália, atingindo muitos países da Europa. Contudo, é justamente nestes países, principalmente nos E.U.A., que, precisamente desde essa altura (os anos 70!), mais se tem reflectido e mais tem aumentado a qualidade da produção ético-filosófico sobre a problemática ética do aborto. E isto, nos dois sentidos. Mas isso não prova que a despenalização do aborto seja uma característica civilizacional sine qua non, absolutamente necessária ao progresso civilizacional, pois os argumentos éticos a favor da defesa da vida intra-uterina são, pelo menos, tão fortes como os que justificam o direito à escolha da mulher.

O progresso civilizacional faz-se com a ponderação dos valores em que as sociedades humanas acreditam e com a melhoria efectiva das tábuas de valores e eventuais alterações racionalmente justificadas da hierarquização desses valores, que orientam a vida das pessoas, que querem ser civilizadas. Para que a despenalização do aborto constituísse uma clara característica de progresso civilizacional teria que estar alicerçada numa clara justificação ética, incontroversa para nós, coisa que, para já, não é possível. E não é possível, justamente porque há (pelos menos) igualmente bons argumentos éticos para justificar uma defesa, mais ou menos intransigente, da vida.

Portanto, a decisão política daqueles países foi alicerçada numa posição ética razoável, mas não única nem tão pouco incontroversa. Se, pura e simplesmente, nos limitarmos a copiar a sua decisão faremos apenas e só isso mesmo: alicerçar uma decisão política numa posição ética controversa e, além do mais, com algumas consequências bastante perversas.

Outro argumento com base na ideia de civilização tem sido adiantado pelos adeptos do “não”. O argumento é precisamente o inverso daquele utilizado pelos adeptos do “sim”: neste momento da história do Ocidente devemos aprender com os erros dos outros países, ao terem despenalizado o aborto, e compreender que não aceitar uma solução demasiado facilitista (a despenalização) será um acto civilizacional de suprema importância, será manter num nível elevado o progresso ético da civilização Ocidental. Portanto, querer ser realmente civilizado é defender um dos valores mais fundamentais, que é o direito à vida. Logo, não devemos despenalizar o aborto.

Ora, este argumento pressupõe também à partida, sem o provar, que despenalizar foi um erro civilizacional, quando é isso que é logicamente necessário provar, o que não é, manifestamente, fácil.

Porém, face aos valores antitéticos da vida e da liberdade, ter que optar necessariamente por um em detrimento do outro – e tendo como pano de fundo o critério civilizacional – tem consequências díspares: optar pela liberdade em detrimento da vida implicará necessariamente um rumo civilizacional arriscado, porquanto se inverte, sem fundamento seguro e de forma incoerente, uma hierarquização intuitiva e racionalmente mais bem fundada, que faz elevar o direito à vida acima do direito à liberdade. É porque há vida humana e tal vida encerra a possibilidade da liberdade de um ser, além de vivo, livre, que devemos cuidar para que tal liberdade se concretize, se efective. E fazer isso é cuidar, antes de mais, da vida. É claro, portanto, que o caminho certo é o da liberdade. Mas a liberdade deve justamente ser limitada pela própria liberdade. O limite da liberdade, no caso do aborto, é a vida que também virá a ser livre. O limite da liberdade de escolha da mulher é a ponderação do direito à vida livre do feto. Até que ponto proibir o aborto poderá, então, ser um traço civilizacional perfeitamente enquadrado no próprio liberalismo político (que, naturalmente, é responsável) que orienta a organização das nossas sociedades modernas? Até que ponto manter a proibição do aborto (ou, noutros países, voltar a proibí-lo!) será uma nota de progresso civilizacional tal como o foi a abolição da pena de morte? Por muitas situações concretas que nos façam pensar na suposta necessidade social do aborto ou da pena de morte, isso não implica que possamos extrair daí a conclusão que abortar e penalizar um criminoso com a sua própria morte são eticamente permissíveis e, que, portanto, constituem um progresso civilizacional.

A questão da despenalização ou não do aborto não é, pois, uma simples questão legal ou social. É, na sua essência, uma questão de progresso civilizacional. O que vai a referendo no próximo dia 11 de Fevereiro não é uma simples orientação jurídica da regulação da acção social. É o rumo da nossa civilização, no que toca a um dos seus suportes axiológicos mais basilares – o direito à vida –, que parece, irremediavelmente, rivalizar com outro valor não menos estruturante – a liberdade. Há que pensar, todavia, o que é que queremos ser, enquanto seres civilizados.

Aborto 3. As consequências éticas da despenalização

O argumento ético menos incontroverso a favor da permissividade do aborto (vide “Aborto 2. A posição pró-vida e posição pró-escolha”) defende que, apesar do feto ter o direito moral à vida, este não tem o direito de utilizar o corpo da mulher contra vontade desta; o aborto consiste em retirar o apoio vital ao feto e não em matá-lo; logo, o aborto é eticamente permissível. Ora, é claro que apesar da intenção não ser matar o feto, o aborto acaba por ser inequivocamente um acto de matar, que, aliás, o próprio argumento liberalizador acaba, implicitamente, por admitir: retirar o apoio vital ao feto não é outra coisa senão impedir que continue a viver.

Mas há argumentos mais controversos, devido às consequências éticas que encerram, como é o caso do argumento seguinte: já que a ciência não consegue encontrar um critério para decidir quando passa a haver vida humana, então há que encontrar um critério ético; ora, o que caracteriza o ser humano dando-lhe valor moral é a consciência de si e a racionalidade, sendo estas as condições para adquirir o direito à vida; como o feto não possui nenhuma delas, então o feto não tem o direito à vida; logo, o aborto é eticamente permissível. Bem se vê o problema deste argumento: é que teríamos que prosseguir na fase de desenvolvimento do recém nascido à procura da fase em que a criança adquiriria, por muito elementar que fossem, tais características. Ora, hoje a ciência sabe que o recém nascido não tem ainda consciência de si, coisa que talvez só comece a acontecer com as primeiras manifestações do eu, durante o segundo ano após o nascimento, e pela racionalidade será preciso esperar talvez, em rigor, até cerca dos 6 ou 7 anos, quando a criança atinge o que Piaget definiu como o estádio das operações concretas. Ou seja, defender o direito à vida com base nas características da consciência de si e da racionalidade implica aceitar a permissividade ética... do infanticídio! Se não há qualquer razão que impeça, mesmo que sejam apenas os progenitores ou mesmo apenas a própria mãe, a interromper a vida intra-uterina do ser humano, também não as há para interromper a vida após o nascimento, pelo menos até a criança ter atingido ao menos uma (e bastaria apenas uma?) das características apresentadas como definidoras do ser humano eticamente seguro pelo direito à vida!

Porém, não seria justo deixar por analisar talvez o argumento mais apelativo em defesa do direito à escolha. Apesar de matar ser um mal porque priva a vítima de um futuro com valor, este valor apenas surge a partir do momento em que o indivíduo tenha desejos conscientes actuais que possam ser satisfeitos se o seu futuro pessoal for preservado. Ora, um recém-nascido pode ter este tipo de desejos, quando deseja desfrutar a sensação de calor ou saciar a fome e, por isso, devemos preservar o seu futuro. Mas, apesar dos desejos deste género surgirem, de forma bastante limitada, no próprio feto algum tempo antes do nascimento (quando começa a apreciar a experiência consciente de ouvir a voz da sua mãe), não existem nas primeiras semanas. Portanto, apesar de matar um feto na fase final da sua gestação ser um mal, tal não implica necessariamente que abortar nas primeiras semanas o seja.

No entanto, esta argumentação é perfeitamente contrariada justamente pela argumentação que pretendia contrariar e que, portanto, não o consegue fazer! (Vide “Aborto 2. A posição pró-vida e posição pró-escolha”) Apesar do feto, nas primeiras semanas de gestação, não possuir desejos conscientes, naquela altura, que possam ser satisfeitos se o seu futuro pessoal for preservado, ele possuí-los-á muito em breve, caso lhe seja permitido viver até lá! Por isso, é eticamente impermissível abortar, pois estaríamos, de qualquer modo, a privar aquele ser em gestação de um futuro como o nosso, isto é, à partida, pleno de possibilidades de futuras experiências com valor.

A solução parece ser, pois, apelar à potencialidade da vida humana nas primeiras fases de desenvolvimento intra-uterino, ideia que não é tão controversa quanto parece. Todavia, é necessário precisar, obviamente, o seguinte: uma bolota não é um carvalho, tal como um espermatozóide ou um óvulo não são um ser humano! Mas o zigoto já não é uma bolota (nem espermatozóide nem óvulo), é a primeira fase do processo de gestação de um ser humano. O zigoto percorre as trompas de falópio até ao útero iniciando aí a nidação, ou seja, a fase de implantação, criando vilosidades (“raízes”) para se agarrar ao útero. Desde a fecundação até ao final dos primeiros 14 dias (até ao final da nidação e início da fase a que se chama propriamente feto), ainda podem ocorrer grandes alterações no então chamado blastocisto – pode, por exemplo, dividir-se em dois ou mais, formando gémeos, ou mesmo interromper-se naturalmente a mitose (o desenvolvimento celular), isto até sem que a própria mulher se tenha apercebido que tinha iniciado o processo de gravidez. Mas há, de facto, um salto qualitativo das células estaminais óvulo e espermatozóide para o zigoto, que inicia um desenvolvimento continuum, que, apesar de poder ser interrompido naturalmente, não deixa de ser um processo que, se tudo “correr bem”, levará o embrião a feto, depois ao nascimento, depois ao desencadear da consciência de si mesmo e de mundo, com a ajuda de características mentais sofisticadas, como a racionalidade, que se desenvolverão, atingirão o seu auge e que, depois, começarão lentamente a definhar... até à morte.

É claro que poderíamos sempre contrapor ao argumento de que o feto é uma vida humana em potência e que por isso tem o direito à vida, que o facto de ser em potência não lhe concede certos direitos como se fosse em acto, já uma pessoa humana. Poderíamos dizer, invocando uma analogia usada para refutar aquele argumento, que o Presidente da República tem o direito de dissolver o Parlamento e eu sou um potencial Presidente da República, mas daí não se segue que eu realmente possua agora esse direito de dissolver o Parlamento! Pois, é certo que eu não possuo agora esse direito. Mas se continuar a viver, se me candidatar à Presidência da República e for eleito, então estarei obviamente em situação de adquirir tal direito. De qualquer modo, a analogia não é justa, pois o que está em questão – o direito à vida de um ser humano em fase embrionária – é algo bem mais crucial. Não se trata de um qualquer direito; trata-se do direito mais fundamental e reconhecido como tal pelas leis constitucionais e pelas declarações de direitos humanos – o direito à vida. Sem passar pela fase embrionária, o ser humano não poderá efectivamente ser o que é. Então, isso faz da fase embrionária uma fase absolutamente integrante do desenvolvimento do ser humano, que nunca seria o que poderia vir a ser, sem ela. E como o seu desenvolvimento é um continuum, então o direito à vida existe desde o início, salvaguardando, muito sensata e naturalmente, raras e eticamente bem fundadas excepções.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Aborto 2. A posição pró-vida e a posição pró-escolha

O aborto é um problema ético e não político (vide "Aborto 1. O que está verdadeiramente em questão"). O que está em questão é saber o que devemos fazer diante de uma gravidez indesejada: o feto tem ou não o direito à vida e, se sim, é ou não um valor ético absolutamente inviolável. Para agravar o problema, não existe consenso científico para definir uma linha divisória entre a não-vida humana e a vida humana, para determinar o momento em que o feto, um conjunto de células, se torna num ser com (um mínimo de) características humanas. Face a este problema, foram-se formando, desde as últimas décadas do século XX, sobretudo em países onde o aborto está despenalizado, designadamente nos E.U.A., duas linhas de argumentação filosófica principais: a posição pró-vida e a posição pró-escolha.

A posição pró-vida defende que é errado interromper voluntariamente a gravidez, pois o feto tem um direito inviolável à vida, salvo em raríssimas excepções. O argumento clássico resume-se ao seguinte: se os fetos tiverem o direito moral à vida, então o aborto é errado; ora, os fetos têm efectivamente o direito moral à vida; logo, o aborto é errado.

A posição pró-escolha consiste em defender que a interrupção voluntária da gravidez não é eticamente errada, pelo menos em alguns casos, se for a mulher a decidir. Um dos primeiros argumentos (Judith Thompson, 1971), que se tornou igualmente clássico, concede que os fetos tenham um direito moral à vida como nós. Mas daí não se pode concluir que o aborto seja errado, já que o direito à vida não confere o direito de utilizar o corpo de outra pessoa, impondo-lhe sacrifícios consideráveis, mesmo que isso seja necessário para continuar a viver. Então, ao abortar, a mulher retirará apenas o apoio vital ao feto, que eclodiu no seu útero de algum modo contra sua vontade. O suposto direito à vida do feto não implica necessariamente que a mulher tenha a obrigação de o manter vivo, permitindo-lhe que continue a beneficiar dos recursos do seu corpo. Nesta perspectiva, o aborto não viola, pois, o direito à vida do feto, sendo, por isso, permissível, pelo menos na grande maioria dos casos (por exemplo, como aqueles que a actual lei portuguesa já prevê).

No entanto, pode contrariar-se este argumento afirmando (como Stephen Schwarz, 1990) que, apesar do argumento de Thompson tentar justificar o aborto apresentando-o como um acto de retirar o apoio vital do feto, o aborto é também um acto de matar um ser humano em gestação. Logo, mesmo que o aborto pudesse ser aceitável enquanto exemplo de retirar o apoio vital, não é aceitável porque também constitui um exemplo de matar. E mesmo que, ao abortar, a intenção não seja efectivamente matar o feto, mas apenas impedi-lo que utilize contra vontade o corpo da mulher, o aborto não deixa ainda assim de ser um acto de matar e, portanto, é eticamente errado.

Uma defesa mais radical da posição pró-escolha (Michael Tooley, 1972) consiste em defender que, uma vez que a Biologia actual não permite encontrar uma linha divisória entre um ser vivo (o feto) e um ser humano, então devemos encontrar um critério ético para estabelecer essa divisão. O momento em que o indivíduo se torna consciente de si e racional deve marcara essa divisão. A consciência de si e a racionalidade constituem, pois, o critério ético – são as condições para adquirir plenamente o direito à vida. Como a consciência de si e a racionalidade apenas se formam depois do nascimento, os fetos não têm esse direito. Logo, o aborto é perfeitamente permissível do ponto de vista ético.

Porém, dado que os recém-nascidos também não têm ainda consciência de si, este argumento implicaria que também eles não tivessem o direito à vida, ideia que contraria as nossas mais profundas intuições éticas, que reprovam o infanticídio. Então, pode argumentar-se a favor do direito à vida do feto (Harry Gensler, 1986), pensando naquilo que é eticamente inaceitável que nos façam a nós próprios e considerar que a criança antes de nascer tem esses mesmos direitos: se não aceitamos que nos matem porque fomos o resultado de uma relação indesejada, porque temos uma deficiência ou porque constituímos uma sobrecarga para os outros, então também não deveremos logicamente aceitar que se interrompa o desenvolvimento do feto com base neste tipo de razões. Ou seja, se a pessoa humana tem o direito à vida (aliás, um dos mais fundamentais), então tê-lo-á em qualquer fase do seu desenvolvimento, desde o meio intra-uterino até à morte.

Um outro argumento a favor da posição pró-vida (Donald Marquis, 1989) consiste em mostrar que um feto, independentemente da sua fase de desenvolvimento, tem um direito à vida tão forte como o nosso, pois tem à sua frente exactamente o mesmo género de experiências futuras como nós. Matar uma pessoa é errado, porque priva a vítima de um futuro com valor; ora, interromper uma gravidez privará igualmente o indivíduo em gestação de um futuro com valor; logo, abortar é eticamente errado.

Este argumento do futuro como o nosso foi, entretanto (David Boonin, 2003), alvo de críticas. Apesar de matar ser um mal porque priva a vítima de um futuro com valor, este valor apenas surge a partir do momento em que o indivíduo tenha desejos conscientes actuais que possam ser satisfeitos se o seu futuro pessoal for preservado. Ora, um recém-nascido pode ter este tipo de desejos, quando deseja desfrutar a sensação de calor ou saciar a fome e, por isso, devemos preservar o seu futuro. Mas, apesar dos desejos deste género surgirem, de forma bastante limitada, no próprio feto algum tempo antes do nascimento (quando começa a apreciar a experiência consciente de ouvir a voz da sua mãe), não existem nas primeiras semanas. Portanto, apesar de matar um feto na fase final da sua gestação ser um mal, tal não implica necessariamente que abortar nas primeiras semanas o seja.

O problema é complexo. E não se esgota nestes argumentos, que foram aqui bastante simplificados. Seria desejável (embora tal não esteja, propriamente, a acontecer!) que, na preparação para o referendo, o debate fosse racional, rigoroso, aprofundado – e centrado no problema ético. Um debate assim consistiria em submeter à análise crítica aquilo que possamos sentir acerca do assunto (as nossas emoções), as nossas opiniões pessoais, bem como as convicções políticas e religiosas, pois só assim enfrentaremos o verdadeiro problema e poderemos tomar uma decisão fundamentada. Há vários argumentos políticos, tanto a favor como contra a despenalização; mas o problema é mais profundo e exige uma reflexão prévia, mais cuidada e séria. E esta reflexão deve ser acessível a todos quantos possível, evitando assim o erro de pensar que as pessoas não são capazes de a empreender ou que considerarão maçadora esta atitude perante assunto tão importante, preferindo o facilitísmo de aceitar soluções insuficientemente fundadas!