Uma das clarificações conceptuais, que importa fazer, em prole do verdadeiro debate em torno da despenalização do aborto, é a que respeita aos conceitos de “despenalização” e “liberalização”. Se desejarmos ser claros teremos, pois, que definir, a priori, os conceitos envolvidos.
Despenalizar um acto significa que o Estado deixa de considerar tal acto como um delito – como algo suficientemente prejudicial ou mau para a vida social, que deva ser evitado ou, quando tal não for possível, punido o seu autor. Portanto, despenalizar consiste em deixar de se atribuir uma pena. Ou seja, se o aborto for despenalizado, deixa de ser crime fazê-lo.
Liberalizar é “tornar livre”, é “libertar”. Liberalizar um acto significa que sobre tal acto ou prática deixa de existir qualquer coacção, moral ou legal, isto é, deixa de ser impedido por leis civis ou reprovado por normas morais reconhecidas pela sociedade. Significa que o acto passa a ser livre, isto é, passa a depender unicamente da vontade da pessoa que o pratica. Ou seja, se o aborto for liberalizado, deixa de ser um acto penalizado juridicamente ou reprovado moralmente, passando a ser praticado por livre vontade da mulher.
Bom, como se pode constatar, as diferenças entre os dois conceitos são, senão meramente aparentes, pelo menos mínimas, superficiais e, mais, completamente irrelevantes para a questão da despenalização do aborto. Senão vejamos. Se o aborto for despenalizado, a mulher grávida pode interromper a sua gravidez por sua livre vontade, ou seja, livre de qualquer coacção, impedimento legal ou reprovação moralmente aceite pela sociedade. Como se vê, isto é justamente liberalizar a prática do aborto – torná-lo livre, ou seja, fazê-lo depender unicamente da vontade da mulher. Portanto, afirmar que o aborto deixará apenas de ser penalizado equivale – naquilo que é relevante para a questão – a afirmar que será liberalizado.
Mas, poderíamos objectar, apesar de despenalizado, isso talvez não tenha que significar, necessariamente, que não possa continuar a ser reprovado moralmente, até porque, diz-se, ninguém é obrigado a fazê-lo! Eis mais um equívoco, que tem sido obstáculo à verdadeira e rigorosa discussão, que importa desfazer (vide “Aborto 1. O que está verdadeiramente em questão”). É que não podemos desligar a questão política do aborto da sua problemática ética. E mais: a solução política deve, logicamente, alicerçar-se numa posição eticamente justificada. Não é, pois, possível que um acto da natureza do aborto seja eticamente reprovável (se o for, será pelas mesmas razões que é eticamente reprovável matar um ser humano como nós!) e, ao mesmo tempo, não seja considerado um delito – algo suficientemente prejudicial ou mau para a vida social, que deva ser evitado ou, se tal não for possível, punido o seu autor! Tal encerraria uma insanável contradição lógica. Ora, como o método reconhecido hoje pelas nossas sociedades contemporâneas como o mais adequado para justificar valores é o da argumentação, e como valorizamos, antes de mais, a argumentação racional, orientada pelos mais elementares princípios e regras lógicas (como o princípio da não contradição), então não podemos aceitar tal argumento. Portanto: só podemos, logicamente, despenalizar aquilo que consideramos não constituir mais um delito e só podemos deixar de considerar o aborto um delito, se deixarmos de o considerar imoral e passarmos a considerá-lo eticamente permissível.
Logo, devemos ter plena consciência que, ao despenalizar o aborto, estaríamos efectivamente – dir-se-ia, “para o bem e para o mal” – a liberalizar tal prática. Isto significa, claramente, que estaríamos a afirmar que deixamos de considerar imoral o acto de matar um feto humano (embora continuemos a pensar que é eticamente inaceitável matar um ser humano!) e passaríamos a considerar isso – matar um feto humano – um acto eticamente permissível.
Sem comentários:
Enviar um comentário