No debate sobre a questão da despenalização do aborto têm surgido dois “argumentos civilizacionais”, um para justificar a despenalização outro para justificar a não despenalização.
Os adeptos do “sim” tendem a argumentar que, como nos principais países civilizados do mundo, designadamente da Europa, já despenalizaram o aborto e querendo Portugal ser um país civilizado, ainda por cima membro da União Europeia, deverá logicamente também despenalizar o aborto, pelo menos até às dez semanas, desde que por opção da mulher e realizado em estabelecimento hospitalar público.
Ora, não é por certos países, em geral civilizados, por muitos que sejam, terem já despenalizado o aborto, que nós, se quisermos ser um país civilizado teremos necessariamente que o fazer rapidamente. É necessário que sejamos suficientemente críticos para questionarmos tal decisão, tal como nesses próprios países ela tem sido questionada! E se eles se enganaram?!
O problema daquele argumento reside na primeira premissa, que quer fazer supor, sem o conseguir provar, que a despenalização do aborto é uma característica indicadora de progresso civilizacional. Além de saber se é efectivamente uma característica de progresso civilizacional, seria necessário saber também qual o grau de importância dessa característica! Mas não nos iludamos com a Ética e o Direito Comparados! O que de facto aconteceu é que, após o Baby Boom do pós-guerra seguiu-se efectivamente, nos anos 70, uma vaga de despenalização do aborto em muitos países ocidentais, dos Estados Unidos da América à Austrália, atingindo muitos países da Europa. Contudo, é justamente nestes países, principalmente nos E.U.A., que, precisamente desde essa altura (os anos 70!), mais se tem reflectido e mais tem aumentado a qualidade da produção ético-filosófico sobre a problemática ética do aborto. E isto, nos dois sentidos. Mas isso não prova que a despenalização do aborto seja uma característica civilizacional sine qua non, absolutamente necessária ao progresso civilizacional, pois os argumentos éticos a favor da defesa da vida intra-uterina são, pelo menos, tão fortes como os que justificam o direito à escolha da mulher.
O progresso civilizacional faz-se com a ponderação dos valores em que as sociedades humanas acreditam e com a melhoria efectiva das tábuas de valores e eventuais alterações racionalmente justificadas da hierarquização desses valores, que orientam a vida das pessoas, que querem ser civilizadas. Para que a despenalização do aborto constituísse uma clara característica de progresso civilizacional teria que estar alicerçada numa clara justificação ética, incontroversa para nós, coisa que, para já, não é possível. E não é possível, justamente porque há (pelos menos) igualmente bons argumentos éticos para justificar uma defesa, mais ou menos intransigente, da vida.
Portanto, a decisão política daqueles países foi alicerçada numa posição ética razoável, mas não única nem tão pouco incontroversa. Se, pura e simplesmente, nos limitarmos a copiar a sua decisão faremos apenas e só isso mesmo: alicerçar uma decisão política numa posição ética controversa e, além do mais, com algumas consequências bastante perversas.
Outro argumento com base na ideia de civilização tem sido adiantado pelos adeptos do “não”. O argumento é precisamente o inverso daquele utilizado pelos adeptos do “sim”: neste momento da história do Ocidente devemos aprender com os erros dos outros países, ao terem despenalizado o aborto, e compreender que não aceitar uma solução demasiado facilitista (a despenalização) será um acto civilizacional de suprema importância, será manter num nível elevado o progresso ético da civilização Ocidental. Portanto, querer ser realmente civilizado é defender um dos valores mais fundamentais, que é o direito à vida. Logo, não devemos despenalizar o aborto.
Ora, este argumento pressupõe também à partida, sem o provar, que despenalizar foi um erro civilizacional, quando é isso que é logicamente necessário provar, o que não é, manifestamente, fácil.
Porém, face aos valores antitéticos da vida e da liberdade, ter que optar necessariamente por um em detrimento do outro – e tendo como pano de fundo o critério civilizacional – tem consequências díspares: optar pela liberdade em detrimento da vida implicará necessariamente um rumo civilizacional arriscado, porquanto se inverte, sem fundamento seguro e de forma incoerente, uma hierarquização intuitiva e racionalmente mais bem fundada, que faz elevar o direito à vida acima do direito à liberdade. É porque há vida humana e tal vida encerra a possibilidade da liberdade de um ser, além de vivo, livre, que devemos cuidar para que tal liberdade se concretize, se efective. E fazer isso é cuidar, antes de mais, da vida. É claro, portanto, que o caminho certo é o da liberdade. Mas a liberdade deve justamente ser limitada pela própria liberdade. O limite da liberdade, no caso do aborto, é a vida que também virá a ser livre. O limite da liberdade de escolha da mulher é a ponderação do direito à vida livre do feto. Até que ponto proibir o aborto poderá, então, ser um traço civilizacional perfeitamente enquadrado no próprio liberalismo político (que, naturalmente, é responsável) que orienta a organização das nossas sociedades modernas? Até que ponto manter a proibição do aborto (ou, noutros países, voltar a proibí-lo!) será uma nota de progresso civilizacional tal como o foi a abolição da pena de morte? Por muitas situações concretas que nos façam pensar na suposta necessidade social do aborto ou da pena de morte, isso não implica que possamos extrair daí a conclusão que abortar e penalizar um criminoso com a sua própria morte são eticamente permissíveis e, que, portanto, constituem um progresso civilizacional.
A questão da despenalização ou não do aborto não é, pois, uma simples questão legal ou social. É, na sua essência, uma questão de progresso civilizacional. O que vai a referendo no próximo dia 11 de Fevereiro não é uma simples orientação jurídica da regulação da acção social. É o rumo da nossa civilização, no que toca a um dos seus suportes axiológicos mais basilares – o direito à vida –, que parece, irremediavelmente, rivalizar com outro valor não menos estruturante – a liberdade. Há que pensar, todavia, o que é que queremos ser, enquanto seres civilizados.
Os adeptos do “sim” tendem a argumentar que, como nos principais países civilizados do mundo, designadamente da Europa, já despenalizaram o aborto e querendo Portugal ser um país civilizado, ainda por cima membro da União Europeia, deverá logicamente também despenalizar o aborto, pelo menos até às dez semanas, desde que por opção da mulher e realizado em estabelecimento hospitalar público.
Ora, não é por certos países, em geral civilizados, por muitos que sejam, terem já despenalizado o aborto, que nós, se quisermos ser um país civilizado teremos necessariamente que o fazer rapidamente. É necessário que sejamos suficientemente críticos para questionarmos tal decisão, tal como nesses próprios países ela tem sido questionada! E se eles se enganaram?!
O problema daquele argumento reside na primeira premissa, que quer fazer supor, sem o conseguir provar, que a despenalização do aborto é uma característica indicadora de progresso civilizacional. Além de saber se é efectivamente uma característica de progresso civilizacional, seria necessário saber também qual o grau de importância dessa característica! Mas não nos iludamos com a Ética e o Direito Comparados! O que de facto aconteceu é que, após o Baby Boom do pós-guerra seguiu-se efectivamente, nos anos 70, uma vaga de despenalização do aborto em muitos países ocidentais, dos Estados Unidos da América à Austrália, atingindo muitos países da Europa. Contudo, é justamente nestes países, principalmente nos E.U.A., que, precisamente desde essa altura (os anos 70!), mais se tem reflectido e mais tem aumentado a qualidade da produção ético-filosófico sobre a problemática ética do aborto. E isto, nos dois sentidos. Mas isso não prova que a despenalização do aborto seja uma característica civilizacional sine qua non, absolutamente necessária ao progresso civilizacional, pois os argumentos éticos a favor da defesa da vida intra-uterina são, pelo menos, tão fortes como os que justificam o direito à escolha da mulher.
O progresso civilizacional faz-se com a ponderação dos valores em que as sociedades humanas acreditam e com a melhoria efectiva das tábuas de valores e eventuais alterações racionalmente justificadas da hierarquização desses valores, que orientam a vida das pessoas, que querem ser civilizadas. Para que a despenalização do aborto constituísse uma clara característica de progresso civilizacional teria que estar alicerçada numa clara justificação ética, incontroversa para nós, coisa que, para já, não é possível. E não é possível, justamente porque há (pelos menos) igualmente bons argumentos éticos para justificar uma defesa, mais ou menos intransigente, da vida.
Portanto, a decisão política daqueles países foi alicerçada numa posição ética razoável, mas não única nem tão pouco incontroversa. Se, pura e simplesmente, nos limitarmos a copiar a sua decisão faremos apenas e só isso mesmo: alicerçar uma decisão política numa posição ética controversa e, além do mais, com algumas consequências bastante perversas.
Outro argumento com base na ideia de civilização tem sido adiantado pelos adeptos do “não”. O argumento é precisamente o inverso daquele utilizado pelos adeptos do “sim”: neste momento da história do Ocidente devemos aprender com os erros dos outros países, ao terem despenalizado o aborto, e compreender que não aceitar uma solução demasiado facilitista (a despenalização) será um acto civilizacional de suprema importância, será manter num nível elevado o progresso ético da civilização Ocidental. Portanto, querer ser realmente civilizado é defender um dos valores mais fundamentais, que é o direito à vida. Logo, não devemos despenalizar o aborto.
Ora, este argumento pressupõe também à partida, sem o provar, que despenalizar foi um erro civilizacional, quando é isso que é logicamente necessário provar, o que não é, manifestamente, fácil.
Porém, face aos valores antitéticos da vida e da liberdade, ter que optar necessariamente por um em detrimento do outro – e tendo como pano de fundo o critério civilizacional – tem consequências díspares: optar pela liberdade em detrimento da vida implicará necessariamente um rumo civilizacional arriscado, porquanto se inverte, sem fundamento seguro e de forma incoerente, uma hierarquização intuitiva e racionalmente mais bem fundada, que faz elevar o direito à vida acima do direito à liberdade. É porque há vida humana e tal vida encerra a possibilidade da liberdade de um ser, além de vivo, livre, que devemos cuidar para que tal liberdade se concretize, se efective. E fazer isso é cuidar, antes de mais, da vida. É claro, portanto, que o caminho certo é o da liberdade. Mas a liberdade deve justamente ser limitada pela própria liberdade. O limite da liberdade, no caso do aborto, é a vida que também virá a ser livre. O limite da liberdade de escolha da mulher é a ponderação do direito à vida livre do feto. Até que ponto proibir o aborto poderá, então, ser um traço civilizacional perfeitamente enquadrado no próprio liberalismo político (que, naturalmente, é responsável) que orienta a organização das nossas sociedades modernas? Até que ponto manter a proibição do aborto (ou, noutros países, voltar a proibí-lo!) será uma nota de progresso civilizacional tal como o foi a abolição da pena de morte? Por muitas situações concretas que nos façam pensar na suposta necessidade social do aborto ou da pena de morte, isso não implica que possamos extrair daí a conclusão que abortar e penalizar um criminoso com a sua própria morte são eticamente permissíveis e, que, portanto, constituem um progresso civilizacional.
A questão da despenalização ou não do aborto não é, pois, uma simples questão legal ou social. É, na sua essência, uma questão de progresso civilizacional. O que vai a referendo no próximo dia 11 de Fevereiro não é uma simples orientação jurídica da regulação da acção social. É o rumo da nossa civilização, no que toca a um dos seus suportes axiológicos mais basilares – o direito à vida –, que parece, irremediavelmente, rivalizar com outro valor não menos estruturante – a liberdade. Há que pensar, todavia, o que é que queremos ser, enquanto seres civilizados.
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