Numa conferência proferida em 1982 no Palácio Imperial em Viena, por ocasião da inauguração da Semana do Livro(1), o filósofo austríaco Karl Popper, um grande apaixonado pelos livros e pelas ideias, defendia a tese de que o livro é o bem cultural mais importante da Europa e talvez da humanidade.
Antes mesmo da invenção, por Gutenberg, do livro impresso – que está na origem do movimento do humanismo, da reforma, do progresso das ciências da natureza e das modernas democracias –, a invenção do livro manuscrito e do comércio livreiro, no tempo do tirano Pisístrato (talvez o primeiro editor europeu!), pode ter desempenhado, argumentou Popper, um papel primordial no chamado “Milagre Grego”. A publicação em forma de livro das obras de Homero (c. 550 a.C.), primeira publicação literária, e a obra Sobre a Natureza, de Anaxágoras (466 a.C.), primeira publicação científica, tiveram uma forte importância para a democracia (Atenas aprendeu a ler e a escrever e tornou-se democrática!) e para a filosofia/ciência gregas.
Ora, a importância do livro reside no facto deste ser um objecto capaz de sustentar, através da linguagem escrita, uma das coisas mais importantes para o homem – as ideias (acerca das suas emoções e sentimentos, acerca de si mesmo, bem como acerca do mundo natural e social). Para Popper, apenas a escrita, mais do que a oralidade, pode proporcionar às ideias um estatuto de objectividade necessário à busca da verdade e de um mundo melhor – através das ideias vertidas em escrita, podemos (por exemplo, dois mil e quinhentos anos depois, se tomarmos o caso do livro de Anaxágoras) (re)interpretá-las, (re)analisá-las, (re)avaliá-las, submetê-las à crítica, pois elas estão sempre ali, inalteradas, sempre disponíveis para nosso deleite e enriquecimento. «O que torna um livro precioso é o ideário objectivo que ele contém», disse Popper naquela conferência.
A invenção da linguagem constitui o primeiro passo no sentido da objectivação do mundo das ideias humanas, pois tornou possível a comunicação mais objectiva do conteúdo inteligível subjectivo da mente humana. A invenção da escrita foi o segundo passo. Mas o maior e incalculavelmente mais importante avanço foi dado pela invenção do livro, que, ancorado num elevado nível de literacia, torna a fruição das emoções literárias e a análise crítica das ideias acessíveis a todos.
Não é difícil concordar com esta tese de Popper. Muito embora outras formas de cultura ocupem lugar de destaque na história humana, o livro é ainda certamente o que melhor permite, nesse solilóquio silencioso, a consumação do ser humano enquanto ser humano.
(1) Conferência coligida in Karl Popper, Em Busca de um Mundo Melhor, Editorial Fragmentos (Lisboa 1989) 101-108.
1 comentário:
Obrigada pela mensagem de apoio e parabéns pelo seu blog. Já o juntei aos meus favoritos.
Virginia Coutinho
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