"Contemplação do pluralismo 2" (Sagres, Agosto 1999)
© Miguel Portugal
Quando se fala em democracia tem-se, normalmente, em conta dois sentidos: 1. o regime político em que a totalidade da população adulta pode participar, directa ou indirectamente (geralmente através de votação), na tomada de decisões e na escolha do governo; 2. o regime político que deve reflectir os verdadeiros interesses do povo, mesmo que o próprio povo ignore quais os seus verdadeiros interesses.
Quando se fala de democracia no primeiro sentido (e deixemos o segundo, que levantaria outro tipo de questões) há que ter em conta dois tipos: a democracia directa e a democracia representativa.
A democracia surgiu historicamente sob a forma de democracia directa: nas cidades-estado da Grécia antiga, os que podiam votar (o que excluía as mulheres, os escravos e outros habitantes considerados não cidadãos) discutiam e votavam cada assunto, em vez de elegerem representantes. As democracias directas apenas são exequíveis com um pequeno número de participantes ou quando as decisões a tomar são relativamente poucas – é extremamente difícil colocar um grande número de pessoas a votar sobre variadíssimos assuntos, apesar da evolução da comunicação electrónica vir um dia a permiti-lo, mas o que exigiria, ainda assim, tempo e uma educação política substancial. Actualmente, a democracia directa apenas sobrevive em três Cantões suíços de reduzida população – Appenzell, Glaris e Unterwald (3% da população suíça) – e nas constituições de alguns estados, que prevêem práticas que se ligam à democracia directa, como o referendo e o direito de iniciativa popular.
Por isso, as democracias actuais são representativas: há eleições, nas quais os eleitores escolhem os seus representantes, que participam depois no processo quotidiano de decisão, que pode estar, ele próprio, organizado de modo democrático. Por vezes, a eleição exige uma decisão maioritária; outras vezes, como por exemplo no caso da Grã-Bretanha, segue um processo que permite que os representantes sejam eleitos mesmo que a maioria não vote neles, desde que mais ninguém tenha mais votos do que eles.
Abraham Lincoln ficou conhecido pela sua lapidar definição de democracia: «a democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo.» De facto, as democracias representativas constituem, em certos aspectos, um governo do povo, mas noutros aspectos não: são um governo do povo, uma vez que os eleitos foram escolhidos pelo povo; mas uma vez eleitos, os representantes do povo nem sempre são obrigados a respeitar a vontade do povo em várias questões específicas da governação. As eleições frequentes são, contudo, uma garantia constitucional contra o abuso de poder – os representantes que não respeitarem os interesses do eleitorado têm poucas probabilidades de ser reeleitos.
Críticas à democracia
Mas a democracia não é isenta de críticas. A mais antiga e uma das mais contundentes (que foi primeiro formulada por Platão nos alvores da democracia grega) é uma crítica conservadora: as decisões políticas sólidas exigem um grau elevado de conhecimentos especializados, que os eleitores não têm. Assim, a democracia directa seria um regime muito pobre, pois o Estado estaria nas mãos de pessoas com fracos conhecimentos e competências – o capitão, e não os passageiros, deveria dirigir o barco (segundo a célebre analogia platónica).
Muitos outros pensadores fazem hoje uma crítica semelhante à democracia representativa: muitos eleitores não estão preparados para avaliar a aptidão de certos candidatos e como não estão preparados para avaliar as opções políticas (aquilo que deveria ser avaliado), escolhem os seus representantes com base em atributos irrelevantes (aspecto físico, simpatia, etc.) ou, então, o seu voto é determinado por preconceitos irreflectidos acerca de partidos políticos. Em resultado disso, muitos excelentes representantes potenciais não são escolhidos, elegendo-se muitos que são em muitos aspectos inadequados, apenas com base em qualidades inapropriadas que, por acaso, possuam.
É claro que em resposta a esta crítica pode contra-argumentar-se que esse não é, necessariamente, um argumento contra a democracia – o que mostra é apenas que é necessária uma educação dos cidadãos para a participação democrática. E mesmo que isto não seja de todo possível, pode sempre argumentar-se que, de entre as alternativas de regime político à nossa disposição, a democracia representativa seja aquela que tem mais probabilidades de promover os interesses do povo. (Como dizia Lord Acton – frase que se celebrizou nos discurso de Winston Churchill –, «a democracia é o menos mau dos maus sistemas»!)
Outra forte objecção à democracia é de inspiração marxista: a democracia dá apenas uma sensação ilusória de participação na decisão política. Muitos pensadores defendem que os processos eleitorais não garantem o governo do povo: alguns eleitores podem não compreender quem defende melhor os seus interesses; podem ser intrujados através de discursos hábeis; a variedade de candidatos oferecida na maior parte das eleições não dá aos eleitores uma escolha genuína (é difícil ver, defendem, porque este tipo de regime é tão elogiado, quando, normalmente, acaba por se escolher entre dois ou três candidatos com propostas políticas virtualmente impossíveis de distinguir!).
Os críticos de inspiração marxista objectam que a democracia representativa é uma “democracia burguesa”, que se limita a reflectir relações de poder já existentes, que são, por sua vez, o resultado de relações económicas. Enquanto estas relações de poder não forem alteradas, dar ao povo a hipótese de votar em eleições é uma perda de tempo e, portanto, uma ilusão.
É claro que a solução clássica, de inspiração marxista, para a organização política da sociedade tem ela própria os seus problemas: a ditadura do proletariado envolve, necessariamente, uma forte e talvez injustificada limitação da liberdade, colidindo, assim, com um valor central na organização justa da sociedade.
Outra forte objecção ao regime democrático é designada por paradoxo da democracia: enquanto partidários dos princípios democráticos, podemos acreditar que a decisão da maioria deve ser seguida, por exemplo no que toca à despenalização da I.V.G. (vulgo, aborto); enquanto indivíduos com fortes crenças contra a I.V.G., podemos acreditar que a sua despenalização nunca deveria ser permitida por escolha da mulher. Assim, parece que, neste caso, acreditamos simultaneamente que a I.V.G. deve ser despenalizada (em resultado da decisão da maioria) e que não deve ser despenalizada (por causa das razões pessoais). Mas estas duas crenças são incompatíveis. Como dizia Tocqueville, não sem um tom fatalmente crítico, a democracia é «a ditadura da maioria»!
Isto não enfraquece totalmente a noção de democracia, mas chama a atenção, em boa verdade, para a possibilidade de conflitos entre a consciência individual e a decisão da maioria, que pode, ela própria, estar equivocada – não é por uma decisão ter sido tomada pela maioria, que faz dela uma boa decisão; apenas a torna legítima no quadro dos princípios democráticos.
Não será agora difícil transpor estas análises para as situações concretas da nossa democracia!
Fontes:
- Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia, trad. port. Desidério Murcho e Aires Almeida (Lisboa: Gradiva, 2007), 2.ª ed.
- Jonathan Wolff, Introdução à Filosofia Política, trad. port. Maria de Fátima St. Aubyn (Lisboa, Gradiva, 2004)
- António José Fernandes, Introdução à Ciência Política (Porto: Porto Editora, 2008).