A Constituição europeia, disfarçada de "Tratado Constitucional", é, enquanto texto sistematizador de um arranjo político institucional, talvez até um bom texto possível a vinte e sete. O método de ratificação do mesmo é que está realmente a gerar mais discussão, pois o que está em jogo é algo de absoluta importância política, pois trata-se de dar resposta a uma questão de fundo da teoria da democracia, mas também naturalmente relevante na acção democrática dos países europeus. A questão é esta: ou se envereda por (1.) um modelo de democracia representativa, em que, (1.1) ao modo mais liberal, os (melhores) representantes eleitos tomam as decisões para deixarem que os cidadãos se ocupem mais livremente das suas acções, ou em que, (1.2) ao modo mais conservador, se argumenta que os cidadãos em geral não são/estão suficientemente esclarecidos para poderem tomar decisões políticas profundas e tecnicamente exigentes; ou se enverada por (2.) um modelo de democracia participativa, em que os cidadãos devem viver em mais ou menos constante atenção às questões públicas, para serem chamdos a tomar parte nas decisões centrais.
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Excluindo aqui as questões imbrincadas da teoria da democracia a este respeito e, naturalmente, evitando a questão dos particularismos culturais e das variadas tradições políticas dos países envolvidos, que legitimam, só por si, um mosaico decisional diverso, é áquela questão que, designadamente, os políticos portugueses devem clara e abertamente dar resposta.
A ratificação de um tratado constitucional é uma questão de fundo para a organização política dos estados envolvidos nesta aventura (e não é aqui pejurativo) da construção árdua de uma união política, pois é precisamente um arranjo institucional que está em jogo, envolvendo directamente o futuro de cada país, mas também de cada cidadão europeu.
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É certo que há a dificuldade, de facto, em se mobilizarem, designadamente em Portugal, as pessoas para uma discussão séria, serena e objectiva (informada) sobre a questão. Mas, na linha de uma discussão actual, em que se pergunta se as sociedades democráticas liberais não se devem afinal basear em «cidadãos virtuosos e não apenas em instituições que habilidosamente avaliam interesses concorrentes»(1), parece-me de todo conveniente continuar a criar condições para o enraizamento do instituto democrático do referendo, que coabita em perfeita harmonia, desde que constitucionalmente regulado e de uso moderado, com, precisamente, um modelo de democracia representativa. E essas condições criam-se num bom sistema educativo e efectivam-se -- não se conhece outra metodologia -- em uso!
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Na hipótese (improvável?!) de haver referendo, não só em Portugal, mas em qualquer dos outros vinte e cinco estados (a Irlanda fá-lo-á por imposição constitucional), tal seria um acto de profunda coragem política, pois estaria em jogo, além da real vocação democrática dos cidadãos europeus, justamente a capacidade política de mobilização dos políticos que almejam por uma melhor (e maior) Europa, que, a crescer, só pode ser sob um pano de fundo consolidado em boas instituições, mas democrático!
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(1) William A. Galston, "Introduction", in J. W. Chapman e William A. Glaston (eds.), Virtue, Nomos, vol. 34 (New York: New York University Press, 1992) p. 1.